Folha de S.Paulo

CRÍTICA Tese que não vinga vira livro cheio de graça

Intenção de Daniel Pennac de separar corpo do espírito é armadilha deslumbran­te que felizmente não deu certo

- MARCELO MIRISOLA

FOLHA

A intenção declarada de Daniel Pennac é afastar o corpo do espírito, como se um livro pudesse ser escrito a partir das reações do corpo em detrimento daquilo que o próprio autor chama de “assaltos da imaginação”.

Evidenteme­nte que Pennac jamais lograria êxito na ambiciosa tentativa de separar a “matéria” que não somente dá liga à sua tese como sustenta o excelente “Diário de um Corpo” —sobretudo porque a matéria em questão é vulgarment­e conhecida como “espírito”.

É muito comum que bons escritores se amparem em teses exóticas, como se essas teses pudessem substituir o poder da narrativa, como se corpo e alma não fossem matérias de ficção.

Teses são apenas jogos de montar, ferramenta­s. Alguns levam isso tão a sério que seus livros se transforma­m em objetos enfadonhos, ilegíveis e, em alguns casos, geniais. Vide Georges Perec e seu “A Vida Modo de Usar”.

No entanto, não é o caso de Pennac —ele não é o que místicos chamam de formalista!

OjogodePen­nacnãoseen­cerra na forma, mas no conteúdo. Ele apenas teve uma ideia que vendeu como tese, e que felizmente não vingou —para este resenhista, não.

Resulta que “Diário de um Corpo” é um romance divertido, cheio de humor e graça que percorre desde a primeira juventude do narrador até a decrepitud­e final, um livro cheio daquilo que o autor chama de “espírito”.

Pennac sabe que os resenhista­s, críticos e leitores se deslumbrar­ão com a engenhoca que armou, uma armadilha falsa. Quem não idealiza separar o corpo dos assaltosda­imaginação?Quemnão quer autonomia e segurança?

Difícil não chancelar e sucumbir ao filé mignon que nos oferece: “Nós morremos porque temos um corpo, e toda vez é uma cultura o que se extingue”. Mas não é nada disso, ele não separou o corpo do espírito, apenas escreveu um livro excelente de memórias em forma de diário —e isso é exatamente o contrário de um corpo que se extingue.

Afinal, como separar os mamilos inchados da adolescênc­ia das consequênc­ias devastador­as de um câncer no final da vida? Impossível separar o corpo do espírito e da ficção, que tudo sela e imprime, tudo leva e tudo traz. MARCELO MIRISOLA AUTOR Daniel Pennac TRADUÇÃO Bernardo Ajzenberg EDITORA Rocco QUANTO R$ 49,50 (336 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

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