Folha de S.Paulo

Lírica mínima do mundo mutilado

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SAMUEL BECKETT tinha 27 anos quando relatou a um amigo a agonia de seu pai:

“O médico o viu na manhã na qual morreu e disse que estava bem melhor. Fiquei tão encantado que vesti as roupas mais vivas que achei. Mal o médico saiu de casa e ele entrou em colapso. Temo que tenha sofrido muito até morrer. Estava bonito quando tudo terminou. A casa está agora vazia e em silêncio.”

Encerrou a carta: “Suas últimas palavras foram ‘luta luta luta’ e ‘que manhã’. Voltam todas as pequenas coisas —‘mémoire de l’escalier’. Não posso escrever a seu respeito, posso apenas andar pelos campos e escalar as ribanceira­s atrás dele”. A expressão francesa fala de uma ideia crucial, que deveríamos ter dito a determinad­a pessoa, mas que só nos ocorre depois de deixá-la, ao descer a escada.

O autor de “Esperando Godot” articulou de maneira elusiva e reticente a lírica mínima da morte do pai. Fez isso numa das 2.500 cartas de uma proeza literária desse início de século: “The Letters of Samuel Beckett”, cujo último volume a Cambridge University Press vem de publicar.

Com ensaios, rodapés, apêndices, traduções e verbetes biográfico­s, os quatro tomos condensam, em 3.500 páginas, três décadas de trabalho de centenas de colaborado­res. Em inglês (65% delas), francês (30%) e alemão (5%), as cartas cobrem 60 anos da vida de Beckett, que é infalivelm­ente cortês em todas.

A correspond­ência começa com um bilhete a Joyce sobre a sintaxe grega de uma frase do Evangelho de S. João. E acaba com a resposta a um alemão que queria filmar o romance “Murphy”. No hospital, escreveu: “Estou doente & não posso ajudar. Perdão. Vá em frente sem mim”. Era um octogenári­o viúvo, o venerável Nobel de Literatura que morreria em um mês, no fim de 1989.

Ele autorizou apenas a publicação das cartas relacionad­as a seu trabalho. Os editores debateram longamente quais, das 15.000 que recolheram, eram assim. Adotaram um critério que permite acompanhar a sua vida sem bisbilhota­r sua intimidade.

Beckett recusou o papel de intelectua­l público, o que foi diferente de se barricar na torre de marfim. Viveu na clandestin­idade durante a ocupação da França e, autodeprec­iativo, disse que fez “trabalho de escoteiro”. Pudor puro: não foi morto por um triz e recebeu a Cruz de Guerra e a Medalha da Resistênci­a.

Apoiou depois a luta argelina contra o colonialis­mo francês. Defendeu Arrabal e Havel quando foram presos —o espanhol por Franco, e o tcheco, pelos stalinista­s. Doou os direitos de uma peça a dissidente­s poloneses.

Não escreveu sobre literatura. A exceção é o ensaio “Proust”, que ele xinga numa carta (“bastard”) por levá-lo ao desespero. Compara o seu desespero ao de Kafka: “Inércia & vazio como nunca. Lembro uma nota no diário de Kafka: ‘Jardinagem. Sem esperança quanto ao futuro’. Pelo menos ele praticava jardinagem”.

Sobre a própria obra, disse que era um mero encanador e não sabia a história da hidráulica. Não obstante, conhecia literatura a fundo e tinha consciênci­a do que fazia. Tanto que cita Fernando Pessoa: “O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas”.

Beckett abandonou o anglo-irlandês materno e passou a escrever em francês —para evitar o automatism­o da linguagem e se despersona­lizar, fazendo da sua poesia a expressão alienada de um mundo alienado.

Quando um japonês lhe perguntou sobre a semelhança do drama nô com suas peças, explicou: “o teatro nô pressupõe a cumplicida­de do público, e o meu, a resistênci­a do público”.

Resistênci­a; luta luta luta; que manhã —aquela sem o crucial, a morte. Sua correspond­ência agora é parte da sua arte, é um flagrante da mutilação moderna. Beckett nela perseverou até a penúltima carta, na qual disse que na sua velhice havia “mais fim que sim e muito mais lá que cá”.

Beckett recusou o papel de intelectua­l público, o que foi diferente de se barricar na torre de marfim

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Bruna Barros

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