ANÁLISE Morre João Gilberto Noll, escritor intimista avesso a marcas temporais e geográficas
FOLHA
Morto na quarta (29) aos 70 anos, João Gilberto Noll era um dos últimos representantes daquilo que o crítico Alfredo Bosi definiu (num momento anterior ao surgimento do escritor gaúcho) como literatura de “sondagem psicológica” —especialmente Lúcio Cardoso e Clarice Lispector.
Com o primeiro Noll partilha temática homoerótica e inadequação social, o universo sombrio e uma temporalidade estática que resvala nos limites do fantástico. Com a segunda, a crispação interior das personagens, projetada num fluxo de escrita que a todo tempo se interroga.
Mas essas são aproximações que servem para situar Noll na esteira do processo em que a literatura brasileira ultrapassou temas sociais e identitários (dominantes desde o modernismo até o regionalismo), voltando-se para a experiência do homem lançado na solidão da cidade.
A metrópole, como espaço ficcional, simboliza também o desenraizamento em relação a laços arcaicos, determinações culturais e históricas.
Identidade cultural, vida urbana, história estão presentes na prosa de Noll, ganhador de cinco prêmios Jabuti. Mas são temas que surgem num turbilhão perceptivo, fenomenológico, em que personagens cancelam a fronteira entre interioridade e exterioridade.
“Sou alguém que se desloca para me manter fixo?”, per- DEVASTAÇÃO O corpo é a pátria dos protagonistas —quase sempre anônimos e em fuga, de identidade instável e sexualidade polimorfa— dos romances e contos de João Gilberto Noll.
Acontecimentos históricos aparecem neles como panoramas de devastação, correlato objetivo de uma subjetividade massacrada.
É assim com o campo de refugiados que o protagonista de “Berkeley em Bellagio” reencontra em Porto Alegre, cujo ruinoso subúrbio é percorrido pelo narrador de “O Quieto Animal da Esquina” (1991). Ou, ainda, na guerra em país indefinido que a personagem de “A Céu Aberto” (1996) atravessa para resgatar o irmão.
Noll radicalizou a suspensão de marcas temporais e geográficas, não uma negação do concreto, mas a reação insubordinada do ser às apropriações por olhares do outro, desejos alheios, cárceres sociais e prescrições da linguagem.
Em “Acenos e Afagos” (2008), plasma a prosa de andamento torturado, litúrgica, num único parágrafo de 200 páginas, descrevendo a metamorfose de uma personagem que não apenas transita de um corpo masculino para o feminino, mas que expande a “epopeia libidinal” para o inanimado e o reino animal.
Sem jamais cair no discurso de gênero panfletário ou militante, Noll fez da homossexualidade o interpretante do sentimento de exílio, ao qual não falta um senso de humor nervoso. Soube levar com delicadeza nos últimos anos a livros para público juvenil, como “Sou Eu!”, “O Nervo da Noite” e “Anjo das Ondas”.
Em 1984, o cineasta Murilo Salles adaptou um de seus contos em “Nunca Fomos Tão Felizes”. Publicou de 1998 a 2001 a coluna “Relâmpago” na Folha, com narrativas curtas.
O escritor de 70 anos foi encontrado morto em sua casa em Porto Alegre. As causas da morte não foram divulgadas até a conclusão desta edição.