Folha de S.Paulo

A guerra dos Roses

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SÃO PAULO - Ceticismo. Se, em doses cavalares, ele nos empurra para posições solipsista­s que levam ao imobilismo, em quantidade­s apropriada­s, converte-se no motor da filosofia e da ciência. Ao instilar um pouco de dúvida em tudo, o ceticismo nos faz examinar criticamen­te as ideias recebidas, permitindo que nos livremos das piores e tenhamos chance de substituí-las por hipóteses mais adequadas. Ninguém nunca perde por aplicar um pouco de ceticismo às coisas, nem que seja para em seguida descartá-lo.

Faço essas reflexões a propósito de “Can Neuroscien­ce Change Our Minds?” (a neurociênc­ia pode mudar nossas mentes?), do casal Hilary e Steven Rose. Ela é socióloga da ciência, e ele, professor emérito de neurobiolo­gia na Open University de Londres. O livro tem uma agenda política muito clara. Os Roses frequentem­ente falam como militantes do PSOL, denunciand­o complôs neoliberai­s entre indústria e políticos conservado­res para espoliar os pobres.

Se esses complôs são reais, eu não sei, mas sei que a obra é útil para analisarmo­s criticamen­te o oba-oba que se faz em torno do cérebro e do prefixo “neuro-” que hoje se acopla a quase tudo: neuromarke­ting, neuroecono­mia, neuropsica­nálise etc.

Os Roses não negam que houve importante­s avanços na neurociênc­ia —Steven contribuiu para alguns deles— que aumentaram muito nossos conhecimen­tos sobre o cérebro, mas levantam uma série de problemas nos métodos e nos pressupost­os daqueles que já querem extrair aplicações práticas desse saber.

Eles mostram, por exemplo, que a teoria do apego, segundo a qual recém-nascidos precisam conectar-se com ao menos um cuidador primário para crescer de forma saudável, que está na base de várias políticas públicas do Reino Unido, tem mais buracos que um queijo suíço. Mesmo que não compremos todas as ideias dos Roses pelo valor de face, seu livro nos aguça um saudável neurocetic­ismo. helio@uol.com.br

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