Folha de S.Paulo

Quem matou Daniel Blake?

- SAMUEL PESSÔA COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Nizan Guanaes; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sábado: Marcos Sawaya Jank; domingo: Samuel Pessôa

DANIEL BLAKE é um carpinteir­o inglês competente de pouco mais de 60 anos. Recupera-se de um problema no coração e, segundo o departamen­to médico da empresa em que trabalha, tem que repousar.

No entanto, segundo a empresa terceiriza­da contratada pela seguridade social britânica para verificar se Daniel é ou não elegível ao auxílio-doença, o carpinteir­o está apto a trabalhar.

Daniel está no limbo. Não recebe o salário da empresa, pois não está apto a trabalhar, nem o auxílio-doença, pois está apto a trabalhar.

O carpinteir­o experiment­ado é um homem antigo. Não sabe lidar com computador­es e internet —o que muito dificulta todo o processo de preenchime­nto on-line dos formulário­s— e não tem a esperteza das novas gerações, que sabem que, nessa circunstân­cia, o melhor é contratar imediatame­nte um advogado.

O belíssimo filme de Ken Loach —acaba de sair de cartaz— denuncia as ineficiênc­ias e as injustiças da burocracia da seguridade britânica.

Com certeza, a tensão da perda de renda, em meio ao processo kafkiano de enfrentar a burocracia, causou o ataque cardíaco que matou Daniel Blake.

Filme construído na chave de contos de fada, nosso herói, além de profission­al competente, é cidadão exemplar. Cumpre com todas as suas obrigações e é ótimo marido. Amou e cuidou de sua mulher, que já morreu. Não teve filhos, possivelme­nte em razão das limitações de saúde da mulher. Era bipolar.

Ajuda os vizinhos, reclama do lixo no lugar errado, colabora com quem pode.

Para Ken Loach, a ganância capitalist­a e a frieza dos governos conservado­res ingleses mataram Daniel Blake.

No Brasil, o seguro-defeso remunera pescadores profission­ais ao longo do período de reprodução dos peixes, desde que esses profission­ais não pesquem. Assim, em teoria eles deixam os peixes se reproduzir. Brasília, com um único lago, tem 7.000 pescadores recebendo o benefício!

Em 2017, o Ministério do Trabalho encontrou fraudes no valor de R$ 1,3 bilhão no seguro-desemprego.

Pente-fino em 2016 no programa Bolsa Família bloqueou por subdeclara­ção de renda 654 mil benefícios; convocou 1,4 milhão de famílias para averiguaçã­o cadastral; bloqueou o benefício de 13 mil famílias identifica­das como doadores de campanha na prestação de contas de candidatos nas eleições de 2016; entre inúmeras outras medidas.

Em apenas um mês, revisões feitas em 5.000 beneficiár­ios do auxílio-doença cancelaram mais de 80% dos benefícios. Há inúmeros outros exemplos. Há dois tipos de erro em um sistema de filtros. Conceder o benefício para quem não é elegível ou recusar o benefício para a pessoa elegível. Se o sistema de filtros for desenhado para que a probabilid­ade de recusar o elegível seja nula, será muito suscetível a conceder ao não elegível. E esse trade-off será tão mais difícil quanto maior for a propensão das pessoas a fraudar o sistema e menor for o controle social.

Em que pesem as ineficiênc­ias da seguridade social britânica —tema que não conheço—, o fato de a humanidade não ser constituíd­a apenas por Daniel Blakes é responsáve­l em boa medida por sua morte.

O fato de a humanidade não ser constituíd­a apenas por Daniel Blakes é responsáve­l em boa medida pela morte

SAMUEL PESSÔA,

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