Folha de S.Paulo

À espera de promessas de Doria, moradores de rua consolidam ‘condomínio’ sob viaduto

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vistas “Veja”, um filtro de água, uma pia, panelas e prateleira­s com plantas.

No percurso pelo labirinto que se forma entre os 29 barracos, surgem tapetes e sofás nas áreas comuns. Há uma cozinha compartilh­ada, com fogão de seis bocas, pia e uma geladeira quase vazia —a energia elétrica, um “gato” puxado das luzes que iluminam o viaduto, só chega à noite.

É quando se vê TV na comunidade 14 Bis —há 14 delas, algumas inclusive já com conversor digital. Toma-se banho na tenda Nove de Julho, como os moradores de rua se referem ao equipament­o municipal a poucos metros dali. E, sob o viaduto, há quatro ba- nheiros químicos, limpos de três em três dias pela prefeitura, segundo os moradores.

Para entrar no “condomínio”, há uma entrada na rua, onde um portão largo dá passagem para as carroças de reciclador­es, e uma na calçada, que dá primeiro para uma quadra desocupada. Ali, moradores da região jogam peladas —e Fernando Silva, 22, orgulha-se de ser o único de rua a se juntar à molecada.

Na noite de quinta (30), após uma partida, foi socorrer a mulher, Nayá Ferreira, 25, após um curto-circuito no fogão em que ela fazia arroz.

“Não quero me esconder nem morrer aqui”, dizia ela. “Aqui é só passagem. Quero moradia, porque sem isso não sou nada. Não tenho pai nem mãe, sempre morei na rua. Emprego é difícil porque sou travesti. Com moradia, teria estrutura para me erguer.”

Para Silva, “se for para oferecer vaga em albergue, nem precisava dele [do Doria]”. “Tem um monte de prédio abandonado na cidade, por que não nos coloca em um?”

Moradores de rua —são quase 16 mil em São Paulo, segundo o último censo, de 2015— rejeitam albergues porque em muitos não são permitidos famílias, casais, carroças e animais de estimação. Além disso, os moradores de rua reclamam de brigas e roubos nos locais e de albergues que os obrigam a sair muito cedo, por volta das 6h.

Na região da prefeitura regional da Sé, não há albergues para todos. São cerca de 3.700 vagas, segundo a prefeitura, para 6.302 moradores de rua (dado do censo de 2015).

A solução, diz o secretário­adjunto da pasta de Assistênci­a e Desenvolvi­mento Social, Filipe Sabará, é empregar as pessoas que, com a renda, passariam a pagar por moradia —e foi essa a proposta da prefeitura aos moradores da 14 Bis. “Oferecemos vagas para todos eles em centros de acolhida [albergues], que é o que temos para oferecer. E oferecemos trabalho. Das cinco pessoas que realmente se interessar­am, só uma quis trabalhar”, diz. “Estão querendo morar lá por enquanto.”

Para o empresário Maicon Ferreira, 32, representa­nte de moradores dos prédios da Nove de Julho que reclamaram sobre os moradores de rua à prefeitura, “ali não é lugar para ninguém ficar”. “Mas a gente sabe que não é fácil do dia para noite tirar as pessoas e realocá-las. Por isso estamos aguentando as pontas.”

Dono de um fogão próprio (“troquei a barraca por um”), botijão próprio (“R$ 150, comprei com o meu dinheiro”) e TV própria (“‘herdei’ por R$ 50”), Marcos Madureira, 45, só deseja ter a casa própria. Na rua há “anos”, o ex-pedreiro e atual cigarreiro (cinco soltos por R$ 1, um maço por R$ 3) começou agora um curso de pintor. “Quando me derem onde morar, vou conseguir me manter”, sorri.

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