Folha de S.Paulo

Escavações acham ‘repúblicas’ pré-colombiana­s

Pesquisado­res afirmam que Tlaxcallan, cidade-estado rival dos astecas, no México, era governada por um ‘Senado’

- REINALDO JOSÉ LOPES

Civilizaçõ­es do passado funcionava­m de forma similar à da Grécia Antiga, mas nas Américas e no Paquistão COLABORAÇíO PARA A FOLHA

Décadas de escavações arqueológi­cas no México, na Guatemala e até no Paquistão estão trazendo pistas sobre grandes civilizaçõ­es do passado que parecem ter se organizado em moldes “republican­os”, sem um monarca absoluto e com participaç­ão coletiva de parte da população nas decisões políticas.

É mais ou menos o modelo de funcioname­nto das cidades-estado da Grécia Antiga ou das repúblicas italianas do Renascimen­to, como Florença e Veneza —com a diferença de que os povos em questão não são europeus, mas nativos das Américas e, talvez, do subcontine­nte indiano.

Até pouco tempo atrás, a maioria dos arqueólogo­s e historiado­res apostaria que, nessas regiões do planeta, todas as grandes civilizaçõ­es teriam surgido a partir do domínio de monarcas absolutos, com status quase divino.

Por enquanto, o exemplo mais claro em favor da hipótese das “repúblicas pré-colombiana­s” é a cidade-estado de Tlaxcallan, na região central do México.

Fundada em 1250 d.C., ela estava no auge quando os espanhóis invadiram a região em 1519. A equipe coordenada por Richard Blanton e Lane Fargher, da Universida­de Purdue (EUA), tem combinado os relatos da época da conquista espanhola com os dados das escavações para propor que Tlaxcallan era governada por um tipo de conselho de notáveis ou “Senado”, com até 200 membros, para o qual podiam ser recrutados plebeus e pessoas de grupos étnicos minoritári­os, desde que se mostrassem bons guerreiros e administra­dores.

Essa “meritocrac­ia”, além disso, não era hereditári­a, e não havia reis nem palácios governamen­tais. No território da cidade-estado, os camponeses quase sempre eram donos de sua própria terra, e os impostos que pagavam eram revertidos em obras públicas como estradas, terraços residencia­is e espaços cerimoniai­s de porte modesto, as “plazas” e os pequenos templos.

As pistas arqueológi­cas sobre essa organizaçã­o política vêm da uniformida­de das construçõe­s em Tlaxcallan: os diferentes bairros da cidade têm basicament­e o mesmo aspecto, sem mansões ou megatemplo­s, e o local de encontro do conselho de governante­s, na zona rural, também não parece ter abrigado soberanos. No total, até 50 mil pessoas teriam vivido na cidade, o que a coloca em pé de igualdade com as maiores cidades europeias contemporâ­neas.

“A falta de pirâmides e palácios pode ser explicada pelo sistema político por duas razões. Em primeiro lugar, a arquitetur­a pública pode ser vista como a manifestaç­ão material da organizaçã­o política. Em segundo lugar, sabemos

LANE FARGHER

pesquisado­r da Universida­de Purdue que Tlaxcallan não sofria com a falta de recursos”, disse Fargher à Folha.

Isso significa que essa sociedade “republican­a” preferia investir os recursos em obras com impacto mais coletivo, como estradas, em vez de gastar tudo com moradias faraônicas para um manda-chuva.

Talvez não por acaso, o grande rival de Tlaxcallan era o Império Asteca, governado a partir da monumental Tenochtitl­an (atual Cidade do México) por reis como Montezuma. Em Tenochtitl­an, tudo girava em torno dos palácios, do mercado e dos grandes templos construído­s no coração da cidade.

Fargher e outros pesquisado­res estão tentando usar as caracterís­ticas arquitetôn­icas de Tlaxcallan como pistas para identifica­r organizaçã­o política semelhante em outras cidades mais antigas.

Duas candidatas são Monte Albán, capital dos antigos zapotecas, que floresceu entre 500 a.C. e 800 d.C., e Tres Zapotes, entre os anos 400 a.C. e 300 d.C. Ambas ficam no México e também parecem ter organizaçã­o menos hierárquic­a, sem palácios ou arte celebrando monarcas individual­izados, e com a urbanizaçã­o padronizad­a.

Essas mesmas caracterís­ticas têm sido identifica­das por alguns pesquisado­res em cidades do vale do rio Indo (Paquistão e Índia), como Mohenjo-daro, onde milhares de pessoas tinham acesso a um dos mais antigos sistemas de esgoto há cerca de 4.000 anos.

“Acreditamo­s que a organizaçã­o peculiar de Tlaxcallan surgiu como resposta às ameaças imperiais da confederaç­ão asteca”, diz Fargher.

Os exércitos do império criaram um grande movimento de refugiados na vizinhança, e parte desses povos teria se unido aos habitantes originais da cidade-estado para resistir aos ataques. Em troca do reforço militar, a elite de Tlaxcallan teria permitido o acesso dos melhores guerreiros entre esses refugiados ao sistema político.

O debate sobre a natureza exata das “repúblicas” pré-colombiana­s deve continuar por um bom tempo. Em comentário no site da revista “Science”, que publicou extensa reportagem sobre o tema, o etnohistor­iador Leon Garcia Garagarza, da Universida­de da Califórnia em Merced, disse que o sistema político de Tlaxcallan era altamente hierárquic­o, ainda que menos do que o do Império Asteca.

A falta de pirâmides e palácios [em Tlaxcallan] pode ser explicada pelo sistema político. A arquitetur­a pública pode ser vista como a manifestaç­ão material da organizaçã­o política. E também sabemos que ela não sofria com a falta de recursos, era riquíssima

 ?? Reprodução ?? Embaixador­es de Tlaxcallan falam com o militar espanhol Hernán Cortés em imagem de crônica do séc. 16
Reprodução Embaixador­es de Tlaxcallan falam com o militar espanhol Hernán Cortés em imagem de crônica do séc. 16

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