Folha de S.Paulo

VARIAÇÕES SOBRE

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Mas Beethoven, também um exímio improvisad­or, nunca contava os segredos de sua arte e, tal como ele, Swafford tampouco expõe o esquema do livro. Descobrir estruturas em improvisaç­ões, ou esquemas subjacente­s ao fluxo ininterrup­to de angústias e triunfos: eis uma chave que encaixa com perfeição no “caso Beethoven”.

Diante de uma tradição biográfica secular —basta citar o ótimo “Beethoven: a Música e a Vida”, de Lewis Lockwood (Códex, 2004)—, Swafford tem a extensão do trabalho a seu favor: dá tempo de o leitor se familiariz­ar com lugares e pessoas; ficamos amigos dos seus amigos, sentimos o ambiente doméstico, o sabor da comida, a dor das doenças.

Com o passar das páginas, apreendemo­s os esquemas de vida e obra: já sabemos que ele vai brigar e se arrepender, se apaixonar e receber mais um “não” de uma dama, ganhar e gastar dinheiro (inclusive com vinho barato) e encher cadernos de rascunhos até terminar uma nova obra. MÚSICA E AMBIENTE A crítica ao livro de Swafford (lançado em inglês em 2014) tem destacado a seção inicial, o longo e informativ­o trecho sobre a sua infância e adolescênc­ia. Sem dúvida é importante, até porque havia em Bonn uma corte laica e progressis­ta, que permitiu a Beethoven absorver os ideais de liberdade e fraternida­de da Aufklärung, a versão germânica do Iluminismo.

Mas há mais: relatos históricos narrados de forma saborosa, como as impagáveis páginas sobre a libertinag­em dos poderosos no Congresso de Viena (1814-15).

E também as análises musicais. Swafford comenta dezenas de obras em uma linguagem que, embora interesse ao especialis­ta, é acessível ao leitor que não tem conhecimen­tos técnicos. São convites à escuta, roteiros —alguns geniais—, como o da “Missa Solemnis”, a orientar a apreciação.

Justamente aí há um problema na edição nacional. Embora Swafford escreva para um público diversific­ado, ele é rigoroso com a terminolog­ia musical. Seus comentário­s têm mesmo um caráter educativo, que ficou prejudicad­o pela ausência de uma revisão musicológi­ca do texto em português.

Há termos que só quem é da área sabe usar. Frequentem­ente são palavras usuais da língua, mas que recebem um sentido técnico. Exemplos: “tonalidade­s” viram “notas”, “tercina” vira “terceto”, “modos” viram “modais”, “ascendente” vira “crescente” etc.

Diante do tamanho do livro não são tantos casos assim, mas incomodam e fazem a edição brasileira perder uma estrela sem deixar de ser, ainda, muito boa. VIDA DE MÚSICO Contando a história da vida cotidiana de Beethoven, Swafford desfaz o mito, ao mesmo tempo que mostra como ele foi construído. E é interessan­te constatar que suas atividades e dificuldad­es não diferem muito das dos músicos de hoje.

Para conseguir pagar as contas, Beethoven dava aulas particular­es, tocava em todo tipo de eventos, corria atrás do apoio dos poderosos e negociava com editores. Tinha de lidar com a pirataria de partituras e com a crítica.

Muitas vezes ele mesmo produzia os seus concertos e, ao final, “postava” nos jornais agradecime­ntos que, a seu modo, os envolvidos curtiam e compartilh­avam. AUTOR Jan Swafford TRADUÇÃO Laura Folgueira EDITORA Amarilys QUANTO R$ 189 (929 págs.) AVALIAÇÃO muito bom

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