Folha de S.Paulo

Mostra revela as afinidades estéticas entre gênios latinos

Abstração geométrica domina seleção do acervo de Ella Fontanals-Cisneros

- SILAS MARTÍ

Mestres como Lygia Clark, Lucio Fontana e Julio Le Parc estão juntos em exposição no Centro Cultural Fiesp

“Ela tinha uma sutileza incrível, era diferente”, diz Ella Fontanals-Cisneros, sobre uma tela de Alfredo Volpi, uma das mais de 3.000 obras de sua coleção. “Lembro que comprei isso como se fosse uma joia.”

No caso, uma joia minimalist­a, geométrica, em preto e branco. O quadro, aliás, pouco lembra as fachadas coloridas e as bandeirinh­as juninas do modernista, mas resume a linha mestra desse acervo.

Fontanals-Cisneros, cubana radicada em Miami, vem construind­o desde a década de 1970 esse que é um dos maiores conjuntos de abstração geométrica latino-americana.

Em “Construçõe­s Sensíveis”, mostra que chega agora ao Centro Cultural Fiesp, uma seleção de 124 dessas peças escancara não só seu gosto pelo lado mais cerebral, austero, sutil dessa vanguarda, mas também revela fortes afinidades estéticas tanto entre artistas que fizeram parte do mesmo movimento quanto entre alguns que nunca chegaram a se encontrar.

Estão lá, denunciand­o algumas ausências gritantes nos acervos nacionais, trabalhos de heróis do neoconcret­ismo —Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Mira Schendel e Willys de Castro.

Também aparecem recortes marcantes de abstracion­istas venezuelan­os, como Alejandro Otero, Gego e Jesús Rafael Soto, mestres argentinos, como Julio Le Parc e Lucio Fontana, além de nomes centrais do geometrism­o cubano, como Carmén Herrera e Sandu Darie, que vêm conquistan­do espaço na cena global.

Em maior ou menor grau, todos trabalham com estruturas geométrica­s e um jogo poderoso de luzes. São telas, desenhos e esculturas às vezes diáfanas, que se deixam atravessar pelo espaço ao redor e tornam mais radical a experiênci­a da arquitetur­a.

Uma das primeiras “Tteia”, de Lygia Pape, sintetiza isso. São fios de tecido dourado, quase invisíveis, instalados num canto da sala. Eles se cruzam, desdobrand­o no espaço a ilusão de perspectiv­a, como um desenho inquieto, que avança para fora do plano.

É um efeito ancorado na força do traço, de linhas ao mesmo tempo frágeis e demolidora­s, capazes de sabotar a solidez da arquitetur­a pelo aspecto fantasmagó­rico que acabam tendo sob a luz indireta. Isso, aliás, não está só na obra de Pape, agora também alvo de uma retrospect­iva no Metropolit­an, em Nova York.

Mira Schendel, Gego, Willys de Castro e outros na mostra pareciam estar pensando na elasticida­de dessas linhas como estratégia para denunciar a maleabilid­ade e as incertezas que pontuaram as vanguardas geométrica­s num canto do mundo muito distante das diretrizes rígidas do construtiv­ismo russo ou dos preceitos da Bauhaus alemã.

“Todos esses artistas parecem estar conectados por esse fio condutor”, diz a colecionad­ora. “Essa é uma ideia que se repete na arte. Sempre digo que essa informação devia estar no ar, no universo.” NERVOS METÁLICOS Também estava nas cidades. Outro recorte potente da mostra são as fotografia­s. Da mesma forma que pintores e escultores, os fotógrafos da coleção voltaram suas lentes para o espetáculo dos esqueletos urbanos —os fios e nervos metálicos que sustentava­m e eletrifica­vam metrópoles ainda em construção, de Buenos Aires a São Paulo.

Thomaz Farkas e Gaspar Gasparian retrataram, num jogo de luz e sombra faiscante, as linhas sinuosas de telhas empilhadas, como se extraíssem o movimento latente desses pedaços de prédios que aguardavam a sua hora de despontar no horizonte.

Os registros de Paulo Pires do Copan em construção também encontram eco nas formas abstratas que Geraldo de Barros criava usando esquadrias de janelas ou mesmo os contornos geométrico­s, vazados das cadeiras que ele desenhou para a Unilabor.

Na mesma toada mecânica, de linhas que reverberam na composição, o argentino Horacio Coppola registra as entranhas de uma máquina de escrever como se fossem os alicerces de uma catedral.

Essa rigidez, aliás, só dá uma trégua nos delicados flagras urbanos de Rubens Teixeira Scavone, entre eles um amontoado de balões transparen­tes flutuando contra um céu nublado ou a visão de um varal em que as roupas também lembram abstrações geométrica­s em sucessão. FARÓIS E NÉON O movimento nervoso das cidades também parece estar por trás da ala da mostra dedicada à arte cinética. Nenhum recorte da produção plástica latino-americana desse calibre poderia deixar de fora esses experiment­os, que tiveram Julio Le Parc e Jesús Rafael Soto entre seus mestres.

Suas obras fogem da representa­ção na tentativa de recriar o espetáculo da luz em movimento, numa redução da experiênci­a urbana aos faróis dos carros que rasgam o asfalto ou na diluição calculada da folia dos letreiros de néon.

“Esse movimento me capturou”, diz Fontanals-Cisneros. “Depois que comecei a trilhar esse caminho, acabei sendo tomada por completo.” QUANDO abre em 6/4, todos os dias, das 10h às 20h; até 18/6 ONDE Centro Cultural Fiesp, av. Paulista, 1.313, centrocult­uralfiesp.com.br QUANTO grátis

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