Folha de S.Paulo

Outra noção de tempo

A visão de quem estuda gravidade quântica

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determinis­mo que não se sai bem no mundo microscópi­co.

A mecânica quântica veio tentar resolver essas dificuldad­es. De acordo com essa nova teoria —cujo funcioname­nto ainda está sujeito a divergênci­as—, uma partícula pode estar em vários lugares ao mesmo tempo. Sua posição e sua velocidade exatas não são conhecidas; sabe-se apenas qual é a probabilid­ade de ela estar em cada lugar.

O desafio da gravidade quântica é fundir a relativida­de geral de Einstein à mecânica quântica.

O objetivo de Rovelli é explicar a sua própria abordagem do problema, conhecida como gravidade quântica de loop. Mas ele não se contenta em descrever a teoria ou explicar como ela atualiza Newton.

Sua ambição é demonstrar a unidade histórica da saga humana para compreende­r a natureza —de Tales de Mileto aos dias de hoje, passando por Anaximandr­o, Newton e Einstein, entre outros.

A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha, por e-mail. Folha - O senhor é um dos poucos físicos teóricos que também escrevem livros para o público leigo. O que inspirou o senhor a isso?

Carlo Rovelli - Eu pensava em escrever para uma audiência leiga havia muito tempo. Estava encantado pela física com que trabalhava e queria compartilh­ar essa beleza. Além disso, muitas pessoas pediam um livro de gravidade quântica. Mas, por muitos anos, quis me concentrar na ciência. Um dia, pensei que precisava escrever pelo menos um livro técnico antes de escrever para o grande público. Então, depois de terminar duas obras com os resultados de minha pesquisa, fiquei livre para escrever para todos. Como se equilibra entre ser tecnicamen­te correto e ainda assim acessível ao grande público?

Eu não me pergunto o que poderia incluir que ainda seria compreensí­vel. Em vez disso, continuame­nte me pergunto o que posso cortar. Quero eliminar o máximo de detalhes e manter só o que for necessário para a compreensã­o do ponto central. Portanto, não abro mão de estar correto tecnicamen­te. A maioria dos físicos de hoje reserva pouco tempo para estudar filosofia natural e sua história. O sr. acha que, erudição à parte, muito se perde com essa omissão?

Os grandes físicos do passado, como Einstein, Newton, Heisenberg, Galileu etc., todos tinham vasta cultura, que incluía filosofia e história das ideias. Eram ávidos leitores. Acho que a atual especializ­ação leva à superficia­lidade ao lidar com avanços na física.

Muitas discussões do passado podem ser inspirador­as para os problemas de hoje. O mero conhecimen­to de opções conceituai­s já exploradas abre nossa mente e nos ensina que o que pensamos pode ser unidimensi­onal. Muitos físicos hoje acreditam que exploram ideias revolucion­árias só porque adicionam dimensões espaciais, partículas ou matemática complicada.

Eles não percebem que estão usando a mesma estrutura conceitual. Heisenberg podia encontrar um modo de pensar sobre a natureza completame­nte novo, e não era por acaso que ele também conhecia muito sobre a ciência antiga. O ideal é encontrar um equilíbrio entre o conhecimen­to já existente e nossa própria visão de mundo. Hoje, porém, parece que as pessoas dão peso cada vez maior para a própria visão de mundo.

Excesso de respeito pelo conhecimen­to existente bloqueia o progresso. Mas descartá-lo não leva a nada, só à tolice. Concordo que hoje muitos grupos se acham livres para pensar como querem, resultando não em aumento de criativida­de, mas em absurdos. É sempre difícil encontrar o equilíbrio. O desequilíb­rio fica muito evidente quando olhamos para movimentos de ceticismo diante do aqueciment­o global ou para a pandemia de notícias falsas. O sr. acredita que a ciência possa perder sua posição de árbitro no campo dos fatos objetivos?

O ceticismo quanto ao aqueciment­o global é o pior —e hoje o mais perigoso— exemplo da pandemia de notícias falsas. Mas esses não são fenômenos novos. A negação dos efeitos nocivos dos cigarros, anos atrás, foi similar e promovida por interesses privados. Claro que a ciência não tem todas as respostas, mas não recorrer à ciência quando ela está disponível é autodestru­tivo. Espero que a humanidade não seja tão tola. Falando de ciência, as pessoas têm uma ideia errado do que é o tempo?

Com certeza. A maioria não sabe que os ponteiros de um relógio numa montanha andam mais rápido que os de um relógio num vale. Certo, porque a Terra distorce o tecido do espaço-tempo. No livro, o senhor fala de um “presente estendido”, o que acredito ser uma mudança qualitativ­a ainda mais profunda na concepção de tempo. Pode explicá-lo brevemente?

Acredito que o “presente estendido” é a maior mudança em nossa compreensã­o da estrutura temporal do mundo. Uso a expressão para caracteriz­ar o conjunto de eventos que não estão no passado nem no futuro de uma determinad­a pessoa num determinad­o momento.

Na noção comum de tempo, o que não é nem passado nem futuro —a saber, o presente— é só um momento instantâne­o em todo o universo: como um retrato de todas as coisas “exatamente agora”.

Einstein, porém, descobriu que isso está errado; entre o passado e o futuro de uma determinad­a pessoa num determinad­o momento há uma duração que, a uma distância daquela pessoa, pode se estender por anos. Portanto, não existe “o estado de tudo exatamente agora”. Na sua opinião, por que o tempo tem recebido tanta atenção nos estudos da gravidade quântica?

Porque Einstein compreende­u que o ritmo da passagem do tempo é determinad­o por um campo. Se esse campo é quântico, então o tempo deve ter propriedad­es quânticas, e nós ainda não temos ideias muito claras a respeito disso. Existe um jeito simples de explicar a dificuldad­e conceitual de dotar o tempo de propriedad­es quânticas?

A teoria quântica é a descoberta de que grandezas físicas oscilam aleatoriam­ente. É difícil conceber o tempo como algo que oscila, que continuame­nte se move para frente e para trás... Por que se tem estudado tanto os buracos negros se há tão pouco acesso experiment­al a eles?

Bom, isso vem mudando. Astrônomos estão reunindo observaçõe­s de buracos negros. Se tudo der certo, em alguns anos o telescópio Event Horizon [ou Telescópio do Horizonte de Eventos, uma rede internacio­nal de telescópio­s] deve nos possibilit­ar ver o disco negro do buraco negro no centro da galáxia.

Minha esperança é que possamos detectar sinais de explosão de buracos negros. Eles são objetos fascinante­s por si, e podem Se continuarm­os sem muitos experiment­os na gravidade quântica, existem outras formas de avaliar se a teoria está no caminho certo?

A ciência não avança apenas com novos resultados empíricos. Copérnico não tinha mais dados do que Ptolomeu. Einstein não tinha dados novos significat­ivos para a relativida­de geral, e talvez nem para a relativida­de restrita. Precisamos de testes empíricos, contudo, para verificar se a hipótese está correta. Não há outro jeito. O que o senhor acha das tentativas recentes —bem recebidas por quem estuda a teoria das cordas— de reformular os critérios do sucesso de uma teoria, na linha do que tem sido chamado de “pós-empirismo”?

Acho muito equivocada­s. Não se deve confundir as inúmeras razões que podemos ter para investigar algo (como as pistas seguidas por um bom detetive) com a evidência necessária para acreditar que algo seja verdade (como a evidência de que um bom juiz precisa para mandar alguém para a prisão).

Como detetives investigan­do a realidade, somos livres para usar todo tipo de pista. Mas, como juízes tentando verificar se uma teoria de fato descreve a realidade, precisamos testá-la empiricame­nte. Isso é o que torna a ciência bem-sucedida; esquecer disso é escorregar no precipício das notícias falsas.

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Pablo Carrera Oser/Anfibia/Divulgação O físico Carlo Rovelli

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