Folha de S.Paulo

Inflação pulveriza dinheiro na Venezuela

Reflexo do caos econômico, rápida deterioraç­ão da moeda produz cenas insólitas como troco de 50 cédulas

- DIEGO ZERBATO

Governo promete tirar cédulas menores de circulação, e nova família de bolívares tem nota de até 20 mil

A mesa parece a de uma apreensão de uma boca de fumo ou a de um milionário exibicioni­sta, como o boxeador Floyd Mayweather. São 1.700 notas, atadas em bolos de cem ou 200 cédulas.

A quantia representa 170 mil bolívares venezuelan­os, parte dos 300 mil obtidos pelo repórter da Folha depois de converter US$ 100 (R$ 315) com um carregador de malas no aeroporto de Caracas.

Os restantes 130 mil foram entregues em notas de 10 mil, que circulam desde janeiro. Se a conversão fosse feita até dezembro passado, seriam mais 1.300 cédulas.

O bolívar é a cara mais visível da inflação na Venezuela. A alta de preços, de 25% ao ano sob Hugo Chávez (1954-2013), se acentuou com Nicolás Maduro e hoje se aproxima de 500%.

Desde 2013, quando o pai da Revolução Bolivarian­a morreu e o afilhado assumiu o poder, o índice de preços ao consumidor avançou 4.257%, ao mesmo tempo em que o PIB encolheu 17%.

Neste período, o país passou a sofrer com o desabastec­imento e viu se reverter a redução da pobreza sob Chávez. De 27,2%, a parcela de pobres subiu para 81,8%.

A queda brusca dos preços do petróleo, que perfaz 90% das exportaçõe­s, é apontada pelo governo como a razão da crise, que Maduro atribui a uma “guerra econômica”.

No entanto, para Boris Ackerman, professor convidado da Universida­de Rei Juan Carlos de Madri, o petróleo foi o estopim de uma situação gestada pelo chavismo.

“A crise ocorreu pela irresponsa­bilidade fiscal, pela péssima gestão dos recursos das exportaçõe­s, a inoperânci­a das empresas estatais, as expropriaç­ões, a corrupção e a absoluta desarticul­ação na economia do país”, afirma.

O economista diz que os preços regulados, o controle do câmbio, as leis trabalhist­as e o controle do movimento de mercadoria­s pesam sobre a escassez de produtos.

A ameaça de expropriaç­ão é apontada como um dos motivos para a fuga dos investimen­tos privados. Sem contrapart­ida estatal, recorreu-se à importação e, sem dinheiro, veio o desabastec­imento. ABISMO A diferença entre preços regulados e liberados chega ao múltiplo de dez. Enquanto o bilhete do metrô de Caracas custa 4 bolívares, os ônibus, geridos por cooperativ­as, são 150 bolívares. Mesmo assim, andar de metrô pode sair mais caro que de moto ou car- 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 ro, dependendo da distância —por 6 bolívares compra-se um litro de gasolina.

Ackerman afirma que só com a liberação do comércio e do câmbio será possível resolver a escassez: “Enquanto isso se mantiver, serão as pessoas próximas ao governo que continuarã­o aproveitan­do as regulações”.

É o que acontece no principal programa estatal para reduzir o desabastec­imento, o Clap (Comitês Locais de Abastecime­nto e Produção), usado pelo governo desde o ano passado para distribuir alimentos e remédios.

A iniciativa é controlada pelas Forças Armadas e pelos coletivos (milícias armadas chavistas), e os beneficiad­os são moradores de regiões aliadas a Maduro.

O governo promete tirar as notas menores de circulação, e a nova família de bolívares, com cédulas de até 20 mil, chega aos poucos às ruas.

Numa corrida de táxi de 5.000 bolívares em Caracas, o repórter entregou uma nota de 10 mil e recebeu de volta 50 cédulas de 100 bolívares. Na cidade mais violenta das Américas, com 138 homicídios para cada 100 mil habitantes (São Paulo tem 9), maços de dinheiro não significa um risco de assalto.

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