Folha de S.Paulo

A greve, muito além da esquerda

- VINICIUS TORRES FREIRE

SEJA QUAL for a dimensão da greve, é quase certo que o protesto vai difundir o mal-estar com as reformas por quase todos os cantos do país, além de dar cara mais geral à insatisfaç­ão.

As manifestaç­ões públicas contra as reformas estavam marcadas pelo seu caráter político mais estrito: tocadas por partidos de esquerda e sindicatos associados, inimigos de Michel Temer, militantes de centrais sindicais.

Sim, o protesto ainda é convocado por centrais (todas, recorde-se). Mas deve contar com apoio grande de professore­s, 2,2 milhões no ensino básico de quase 49 milhões de crianças e jovens, além dos 400 mil professore­s de 8 milhões de universitá­rios, por exemplo importante.

O protesto se torna mais capilar, chega às esquinas das famílias, gostem ou não de reformas. Mesmo as escolas da elite, ao menos em São Paulo, prometem parar.

Faz um mês, a Igreja Católica, à frente de 10 mil paróquias, criticou de frente as reformas, com os mesmos argumentos da esquerda, em nota oficial da CNBB (Confederaç­ão Nacional dos Bispos do Brasil). Nesta quarta-feira (26), deve se manifestar oficialmen­te sobre a greve. Muitos arcebispos, bispos e padres já incentivam o protesto.

A greve deve imobilizar parte das cidades grandes. Além dos professore­s, conta com a adesão de variadas categorias de trabalhado­res, muitos de classe média: bancários, químicos, petroleiro­s, saúde.

A popularida­de de Temer é quase um absoluto, na prática não tem como diminuir. A questão óbvia e imediata é saber se o Congresso vai se sentir ainda mais pressionad­o a esvaziar a reforma da Previdênci­a. A trabalhist­a pode bem ser que passe, até por haver tanto dono de empresa no Parlamento. No caso da previdenci­ária, a conta fica para o Estado, para os impostos, para o futuro: é empurrada para alguém.

A questão menos imediata, mas importante, é que um protesto mais amplo e geral pode reconfigur­ar discursos e coalizões para o ano eleitoral, que começa logo em outubro.

Não se pode dizer grande coisa dessa reconfigur­ação sem saber da persistênc­ia do protesto e da votação das reformas. A conversa eleitoral pode começar com o fato consumado de reformas aprovadas e manifestan­tes desmobiliz­ados. Ou não. Mas devem ficar cicatrizes.

Com qual conversa virão os candidatos a presidir um país em 2019 ainda em arrocho crescente? Um país com desemprego perto de 14%, de gente ainda mais atochada em hospitais insuficien­tes, que terá acabado de ver reviravolt­as no núcleo das relações socioeconô­micas, trabalho e seguridade social.

Vão prometer o céu, como o PT em 2014, e tomar posse com um estelionat­o dos infernos? Vão tentar açucarar a mera persistênc­ia do arrocho? Vão propor um pacto de redistribu­ição de perdas, o que este governo reacionári­o não fez, entrando em conflito com parte importante da elite que quer tocar reformas sem mexer em impostos, por exemplo?

As perguntas parecem abstratas. Parecem tratar de um povo vago e de opiniões nebulosas. Para quem pensa assim, convém lembrar o choque político e de confiança econômica que foi o estelionat­o de Dilma Rousseff. Das broncas desatadas em Junho de 2013. Na devastação do PT na eleição de 2016.

Mentir e roubar não tem saído mais tão barato. vinicius.torres@grupofolha.com.br

Protesto de sexta-feira deve fazer com que insatisfaç­ão se torne mais capilar e ganha cara nova

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