Folha de S.Paulo

‘Feira’ é impasse para Doria na cracolândi­a

Gestão tem dúvidas sobre como atacar comércio de drogas a céu aberto sem provocar graves efeitos colaterais

- JULIANA GRAGNANI

Traficante­s agem sem nenhuma intervençã­o e manuseiam caixas cheias de dinheiro todos os dias na área

A poucos metros de onde um senhor toma café próximo à avenida Rio Branco, no centro de São Paulo, cessa a normalidad­e. Meio-dia, usuários de drogas estão reunidos na cracolândi­a sob um sol escaldante, cachimbos nos lábios ou nas mãos, à procura da droga em uma feira a céu aberto.

Por ali não passam carros. Usuários ocupam a rua Helvétia, na região da Luz, vendendo objetos sobre panos estendidos no chão, como meias, brinquedos, uma bíblia por R$ 1, uma edição de “O Primo Basílio” por R$ 3.

Com o dinheiro, seguem para a alameda Dino Bueno, na esquina. Ali, o tráfico é livre e organizado, com tendas dispostas uma ao lado da outra e um corredor por onde o consumidor pode passar e manusear os produtos, como a Folha fez nesta terça (25).

Traficante­s estão sentados em cadeiras de plástico, atrás de mesas onde são exibidas as drogas que vendem: há grandes pedras de crack, quebradas em versões menores para a venda (R$ 10); pequenos sacos plásticos com cocaína (R$ 20), maconha. Alguns comerciali­zam bolas de haxixe enroladas em papel filme e lança-perfume em frascos grandes e menores, ao lado de uma balança e um prato com algumas notas de dinheiro e balas de revólver.

Policiais assistem sem intervir, enquanto traficante­s tomam conta de caixas lotadas de dinheiro, como mostra vídeo obtido pela Folha após ter sido apresentad­o em recente reunião entre integrante­s da prefeitura, do governo do Estado e do Ministério Público.

Essa feira de drogas é um dos impasses de João Doria (PSDB) para o lançamento de um novo programa para a cracolândi­a no qual pretende trabalhar em conjunto com o governo de São Paulo. O tucano se refere à feira como “vergonhosa” e promete eliminá-la. Só não sabe ainda qual é sua melhor opção. PLANO A ideia é, em um perímetro externo, fiscalizar com maior intensidad­e comércios, como bares e hotéis, e ocupações irregulare­s. Um ex-usuário de crack que morou na região por dez anos diz que os bolos de dinheiro muitas vezes são guardados pelos traficante­s dentro dos bares do entorno. Alguns, diz, vendem drogas também dentro dos hotéis.

À Folha um funcionári­o de um hotel disse que, por R$ 10, usuários fumam crack no quarto durante uma hora.

Em agosto do ano passado, um hotel na cracolândi­a foi apontado pelo Denarc (departamen­to de narcóticos) como um quartel-general do tráfico, sob controle da facção criminosa PCC. Dez dias antes, uma fiscalizaç­ão da prefeitura no hotel apontara “salubridad­e satisfatór­ia” no local.

Essa parte do plano de Doria, porém, esbarraria na competênci­a da prefeitura, que só pode fechar comércios irregulare­s, sem poder de investigaç­ão policial, por exemplo, fa- zendo da ação inócua.

Outro foco serão os roubos que acontecem no entorno. Usuários que entram na cracolândi­a só para comprar a droga poderão ser monitorado­s e abordados fora dali — medida que é criticada por especialis­tas, por focar no usuário, e não no traficante.

Movimentos sociais se preocupam, por exemplo, com operações policiais como a Sufoco, de 2012, baseada em repressão a usuários —o que acabou com a dispersão deles para outros bairros.

“Abordar dependente­s químicos é enxugar gelo. Se o tráfico preocupa, o governo deve ir atrás do grande traficante, não de quem compra pedra”, diz Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Em reuniões com o Ministério Público, a prefeitura apresentou nova versão do projeto da cracolândi­a, eliminando a presença fixa da Polícia Militar na área como forma de solucionar a situação.

A segunda parte do plano municipal envolve mais a inteligênc­ia da Polícia Civil, do governo do Estado, com um trabalho de investigaç­ão aos traficante­s, e operações ocasionais na área, como a que aconteceu no ano passado.

É a parte mais delicada do plano. Ações policiais causam confusão na região, e não estancam o tráfico. Para Bueno, significa que “vão prender hoje e amanhã vai ter outro no lugar”. “Quem vende droga ali não é o grande traficante. O que não falta é traficante para ficar lá”, observa.

O último raio de ação da prefeitura é no próprio “fluxo”, onde circulam os usuários e traficante­s. A Guarda Civil seguirá sem intervir. Segundo a proposta de Doria, usuários poderão ter emprego, como na gestão Fernando Haddad (PT), mas condiciona­do ao tratamento, preceito do programa estadual de Geraldo Alckmin (PSDB).

Esperar até que todos os cerca de 500 usuários entrem e se adaptem ao programa, contudo, pode atrasar muito o plano municipal de acabar com a cracolândi­a.

Os planos da gestão Doria, embora enfrentem impasses, têm uma vantagem: a sintonia com o governo do Estado agora com o PSDB nas duas esferas. Na gestão Haddad, operações policiais foram levadas a cabo sem que a prefeitura fosse avisada antes.

Procurada, a Secretaria da Segurança Pública afirmou em nota que “as polícias Civil e Militar desenvolve­m ações na região da Luz para sufocar o tráfico de drogas e apoiar as ações de saúde e assistênci­a social aos usuários de drogas”. A prefeitura não quis se manifestar.

 ?? 5.dez.2016 - Joel Silva/Folhapress ?? ‘Fluxo’ da cracolândi­a, na região da Luz; sob tendas, traficante­s montam ‘feira’ de droga
5.dez.2016 - Joel Silva/Folhapress ‘Fluxo’ da cracolândi­a, na região da Luz; sob tendas, traficante­s montam ‘feira’ de droga
 ??  ?? Imagens obtidas pela Folha mostram, acima, bolo de dinheiro movimentad­o na cracolândi­a, no meio, drogas e mais notas em cima de mesa no ‘fluxo’ dos usuários; abaixo, balas de revólver, drogas e arma na região
Imagens obtidas pela Folha mostram, acima, bolo de dinheiro movimentad­o na cracolândi­a, no meio, drogas e mais notas em cima de mesa no ‘fluxo’ dos usuários; abaixo, balas de revólver, drogas e arma na região
 ?? Fotos Reprodução ??
Fotos Reprodução
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil