Obra maior de Robert Pirsig foi recusada por mais de cem editores
Livro ‘Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas’ foi a maneira do autor, morto aos 88, apaziguar seus conflitos
FOLHA
A demanda realizada por Robert Pirsig em busca de editor para publicar seu célebre livro, “Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas”, entrará para a história.
Após seis anos de tentativas e a recusa de mais de cem editores, uma editora pequena resolveu apostar no autor desconhecido. Com efeito, ele recebeu US$ 3.000 pelo contrato, e o livro saiu em 1974.
Para surpresa de todos, a obra começou a conquistar a curiosidade dos leitores. Em pouco tempo atingiu os 100 mil exemplares vendidos, e após a crítica de George Steiner na “The New Yorker”, selou a marca de um milhão.
Um feito extraordinário para o escritor que ninguém conhecia. Mas a partir daí Pirsig tornou-se uma celebridade literária, a sua obra foi traduzida em todo o mundo, e se encerrou na segunda (24), ao morrer em sua casa de South Berwick (EUA), aos 88 anos.
Nascido em Minneapolis, em 1928, Pirsig teve inúmeras profissões, atuou no conflito da Coreia (quando aproveitou para conhecer o zen-budismo japonês), estudou filosofia e foi internado várias vezes para tratar da esquizofrenia, quando levou eletrochoques.
Creio que sua obra maior foi a maneira que encontrou para se apaziguar consigo mesmo, tendo em conta a experiência da guerra coreana e a ruptura mental que sofreu.
A ação do livro dá-se na viagem que de fato o autor fez com o filho, percorrendo a distância entre a sua casa no Minnesota e a costa do Pacífico, atravessando os Estados Unidos de uma ponta a outra.
O fulcro central da obra reside na discussão que Pirsig estabelece entre progresso tecnológico e humanismo .
Mas há ainda uma sucessão de pistas que giram em torno da obra, como os ecos do movimento hippie, a transgressão de Maio de 68 e a liberdade, tudo isso mesclado com as tradições zen-budistas, forjando a sua “metafísica da qualidade”.
Pirsig arma a arapuca desde o título, driblando o leitor que se vê perante algo que pode ser tanto um tratado de mística oriental,comoummanualdeconserto para motociclistas.
É aí que surpreende, pois os monólogos interiores que permeiamsuasinquiriçõespromovem o embate entre os valores domundoindustrializadoetecnológico e a ressonância na vida das pessoas. O aspecto positivo que se revela no livro é a simbiose eficaz que promove ao discutir temas como a virtude e os defeitos, e em paralelo fala sobre peças, soldaduras e motores.
Em 1991, após muitos anos, o autor publicou “Lila: Uma Investigação sobre a Moral”, mas o efeito não foi o mesmo. Apesar da curiosidade, o livro obteve receptividade morna.
Numa época em que não havia internet, o livro emblemático de Pirsig só foi publicado entre nós em meados dos anos 1980, na editora Paz e Terra. Transformou-se num fenômeno, também. A edição atual é da WMF/Martins Fontes, o que demonstra que continua encantando novas gerações. Há autores de um livro só. Robert Pirsig é um deles. JORGE HENRIQUE BASTOS