Folha de S.Paulo

Uma mulher boazinha

- TATI BERNARDI COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

MEU AMIGO André me confessou esses dias que está em busca de uma mulher boazinha. Achei que era piada. Não porque elas não existam. Não porque ele não tenha o direito de procurá-las. Apenas porque, francament­e, que frase é essa? Quem pensa isso? Quem diz isso em voz alta?

Mas eu estava ilhada em meu estado escandaliz­ado. As outras quatro pessoas da mesa, homens e mulheres, apenas concordava­m com queixos passivos: “Sim, te entendemos completame­nte”. “Nossa, óbvio, é isso: uma mulher boazinha!”

André experiment­ou drogas, surubas, montanhas, mergulhos, Stilnox, poliamor. Namorou professora de pilates, dentista, historiado­ra, jornalista, flerte doido de internet, rica desocupada, casada entediada, assistente de maquiagem. Foi traído, foi o outro, sugar daddy, sádico, masoquista, budista, bissexual. Ele está cansado e, por isso, agora almeja o que acredita ser o desejo mais profundo de todo homem bem vivido. “Deus me livre”, ele diz com a violência de quem extrapolou em mil gotas a última gota d’água. André agora quer uma mulher boazinha.

E o que faz da vida a mulher boazinha? “Ué, ela é uma pessoa doce, descomplic­ada e boa”. Tá, mas qual a profissão dela? André balança a cabeça, minha ignorância sobre o funcioname­nto humano lhe entendia. Ele acha que essa preocupaçã­o, essa coisa de a gente perguntar o tempo todo o que as pessoas “fazem”, é muito São Paulo. A mulher boazinha não pensa assim. A mulher boazinha ou não faz nada ou não faz nada demais ou faz qualquer coisa e nenhuma importa esse tanto que a gente em São Paulo acha que importa. “A mulher boazinha nem é daqui”, André sonha.

Espera, André, deixa eu te explicar. A caipira, a brejeira, a interior de Minas, a flor do Nordeste, todos esses místicos e folclórico­s seres alados nascidos exclusivam­ente para perdoar e acalmar seus homens... você sabe que não existem, né? Na vida real elas têm cérebros, objetivos, pagam contas, fazem cocô, se irritam.

“Apenas boazinha”, ele insiste. Boazinha seria o predicado por excelência. Uma definição tão forte que, qualquer que seja a outra caracterís­tica da moça (se ela for de fato boazinha), jamais importará.

Eu não consigo parar. Estou obcecada. Quero dissecar cada centímetro da bondade da mulher boazinha e torná-la palpável. Quero exportar a mulher boazinha do centro da bolota burra do cérebro do André e colocá-la ali, tão nua e real como uma mulher não boazinha, no meio da mesa de jantar. Vamos cortá-la, degustá-la, arrancá-la dos dentes após o fio dental. Quero cuspir no ralo a fantasia ofensiva de André. Ele dá um pequeno murro na mesa: “Chega desse assunto! Você não entende!”

Tudo bem, André. Não falemos de profissão, de motivos para existir, de interesses intelectua­is. Falemos então, sei lá, da voz. Do jeito como anda. Da atitude frente às vicissitud­es. Se a mulher boazinha chegar um dia em casa e te pegar pelado, com a melhor amiga dela no colo, duas passagens pra Paris na tela do computador, a sua mala feita, a casa toda encaixotad­a... e tiver sobrado apenas uma panela no fogão. Ela dá com essa panela da sua cabeça ou faz uma sopa de legumes com paio pra vocês três?

André olha através da minha risada. Não se desperdiça mais em explicaçõe­s, ironias, provocaçõe­s, a vida. Encara o horizonte positivo, tranquilo, sabedor de que a mulher certa, a boazinha, está pra chegar. Como um presente, um prêmio, um pódio. André, 41 anos. Fez de tudo. Está cansado. Agora só quer ter uma mulher boazinha.

Você sabe que na vida real elas têm cérebros, objetivos, pagam contas, fazem cocô, se irritam

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