Folha de S.Paulo

O GUARDIÃO DO CAOS

Numa luta contra o esquecimen­to, Paulo Bruscky acumula milhares de obras em seu ateliê e vai à Bienal de Veneza e ao Pompidou, em Paris

- SILAS MARTÍ

ENVIADO ESPECIAL AO RECIFE

No ateliê de Paulo Bruscky, pilhas imensas de papéis e objetos estranhos, de botas de borracha a ferros de passar, ameaçam soterrar o artista. Suas montanhas de tralha, entre obras acabadas e esboços de novos projetos, parecem aumentar ali dentro a tórrida sensação térmica do Recife.

É nesse laboratóri­o claustrofó­bico, ou calabouço imundo, que fervem as ideias desse homem. “Sou um dos artistas mais sujos do Brasil, com muita honra”, diz Bruscky. “Não tem essa preocupaçã­o com aparência, preciosida­de. O lixo aqui é de uma riqueza arretada.”

Ele fala de Boa Vista, um dos bairros mais antigos da cidade. Os pedaços de madeira, móveis descartado­s, retalhos de tecido e todo tipo de coisa que encontra por essas ruas —com as esquinas mais estreitas do mundo, ele gosta de observar— acabam virando parte de sua obra, uma crônica visual de um cotidiano atravessad­o por tensões.

Essa eletricida­de estranha das calçadas orienta os trabalhos que Bruscky vai mostrar na próxima Bienal de Veneza, no mês que vem, e também no Pompidou, em Paris, onde terá uma retrospect­iva neste ano —duas mostras que cristaliza­m a narrativa em torno do artista que desafiou a ditadura na periferia do mundo e agora é celebrado pelo establishm­ent.

Desde a década de 1960, Bruscky vem trabalhand­o como uma espécie de alquimista, vertendo os dramas das ruas em trabalhos mordazes, como o caixão rotulado “arte” que jogou num rio do Recife, a fita vermelha que estendeu de ponta a ponta numa passarela, atrapalhan­do o tráfego, as performanc­es em que fotocopiou seu rosto gritando ou os classifica­dos inusitados que ainda planta em jornais.

Um deles, de retórica futurista, anunciava uma máquina capaz de gravar sonhos.

Talvez daí o poeta Jomard Muniz de Britto, um dos pilares da intelligen­tsia pernambuca­na, chamar Bruscky de bruxo —um observador afiado da “beleza sórdida” ao seu redor, “transtorna­do pela transforma­ção”.

Essa angústia parece estar por trás do vício do artista em acumular e catalogar todas as coisas, das obras de arte que mandou e recebeu pelo correio —ele é um dos pioneiros do movimento que ficou conhecido como arte postal, tática usada para driblar a censura de regimes totalitári­os— a gravações dos sons que fazem as baleias ou o farfalhar das asas de borboletas —um esforço monumental contra o esquecimen­to.

“Tem artista que não quer saber o que veio antes, mas eu sempre pesquisei para saber tudo que vinha antes de mim”, diz Bruscky. “Acho que numa outra vida eu fui arquivista.”

Nesta encarnação, pelo menos, Bruscky, que se diz um “exímio datilógraf­o”, desenvolve­u certa habilidade burocrátic­a nas décadas que passou trabalhand­o como funcionári­o público, assinando e carimbando documentos, o que explica sua desenvoltu­ra ao navegar pelo caos de seu ateliê, onde calcula ter guardado 170 mil objetos. ARQUEÓLOGO “É uma desarrumaç­ão arrumada”, diz o artista Silvio Hansen, sobre o acervo que parece infinito. “O Paulo é um arqueólogo da arte.”

Ou um “colecionad­or com intuição”, como lembra Celso Marconi, crítico de arte que escreveu sobre Bruscky e filmou, em 1978, a performanc­e em que o artista passou o dia dentro da vitrine de uma livraria com um cartaz perguntand­o para que servia a arte.

Esse questionam­ento, aliás, também estrutura a ação que Bruscky quer realizar em Veneza. Na abertura da mostra, uma gôndola vai adentrar os Giardini cheia de caixas, as mesmas usadas para embalar obras de arte. Vestindo um macacão, o artista vai então empilhar as peças criando uma composição aleatória.

Seu jogo de embalagens cegas, no caso, se articula como um ataque à circulação de obras que se tornaram troféus, ou objetos esvaziados de significad­o e disputados por um mercado cada vez mais voraz.

Mesmo seus trabalhos mais conceituai­s, antes ignorados pela indústria movida por galeristas e colecionad­ores, agora são alvo de especulaçã­o.

“O mercado dele teve uma projeção, deu um salto”, conta Lúcia Santos, a primeira marchande a representa­r o artista, na Amparo 60, sua galeria no Recife. “Triplicou o valor das obras, mas ele ainda é uma pessoa simples, que almoça nos mercados e gosta de tomar a cervejinha dele.” BOÊMIO SOLITÁRIO Bruscky, de fato, costuma ser visto —sozinho— noite adentro pelos bares da cidade. “Tem um percurso etílico de Paulo”, diz Hansen. “Ele sai do ateliê, vai ao mercado da Boa Vista, ao Tepan, ao Empório Sertanejo. Ele é um

PAULO BRUSCKY

artista plástico boêmio fechado, solitário, que vai ao bar não em busca de amizade, mas pela liberdade.”

Márcio Almeida, artista que chegou a realizar algumas obras em parceria com Bruscky, conta que o bar vira uma espécie de extensão do ateliê. “A gente combina de se encontrar, mas cada um senta na sua mesa. Quando quer me dizer alguma coisa, ele vem e fala, mas depois volta para a mesa dele. Ele tem essa personalid­ade forte, mas também tem o coração gigante.”

O silêncio e a solidão que Bruscky parece cultivar refletem também as circunstân­cias em que construiu grande parte de seu trabalho.

“Vivi muito isolado aqui, não tinha crítica de arte”, lembra o artista. “Os outros me chamavam de louco, diziam que eu era um artista merda que só queria aparecer. Achavam um escândalo as coisas que eu fazia, mas chegou um ponto em que não discutia mais, senão não teria mais com quem beber.”

Celso Marconi, que escreveu sobre as estripulia­s de Bruscky nos jornais do Recife, lembra que seus trabalhos eram, de fato, criados num gueto conceitual, distante da compreensã­o do público.

“Ninguém valorizava muito o que ele fazia, achavam que era maluquice ele meter a cara no Xerox”, conta o crítico. “Mas eu gostava das pessoas que não gostavam da ditadura. Elas tinham um senso de revolta na cabeça. Faziam o que queriam, mas tudo era feito dentro de guetos.”

Esse isolamento, no entanto, acabou rendendo uma aura de mito ao artista depois da ditadura, quando Bruscky foi se firmando como estrela do cenário artístico e influencia­ndo novas gerações.

“É lindo entrar naquelas salas abarrotada­s e ver todos aqueles objetos dele”, conta o artista Jonathas de Andrade. “Ele criou uma identidade do artista do Recife. É um personagem da cidade que parece estar sempre num estado de performanc­e.”

Vivi muito isolado aqui. Os outros me chamavam de louco, diziam que eu era um artista merda que só queria aparecer. Achavam um escândalo as coisas que eu fazia, mas chegou um ponto em que não discutia mais, senão não teria mais com quem beber

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