Três espetáculos abordam racismo sob provocações estética e reflexiva
FOLHA
A consciência histórica do racismo, herança de três séculos e meio de escravidão, e o quanto a prática desse crime afeta a vida em sociedade ganham abordagens reflexivas e provocadoras em três espetáculos de distintas poéticas.
Em “Race”, a companhia carioca Teatro Epigenia traduz para a cena a ambiguidade do título inglês (corrida, raça) e formaliza uma atuação que pulsa ao ritmo dos diálogos curtos e faiscantes de David Mamet.
Nos bastidores de um drama de tribunal —que não se passa no interior de um, mas num escritório de advocacia—, o estadunidense escrutina como é construída a defesa de um branco milionário acusado de estuprar uma jovem negra.
Em princípio, a banca não assumiria o caso, mas a advogada, também ela jovem e negra, assente em conversa reservada com o cliente, para espanto dos seus superiores.
Sucedem-se senões e assertivas de parte a parte. Antecedentes e arguições dos quatro refletem o inconsciente coletivo. São entrelaçadas questões da cor da pele e da mulher.
Na segunda obra da trilogia em torno de Mamet, o diretor Gustavo Paso expõe como a incisão da palavra serve a ambas as artes —a de representar e a de advogar. Não iria muito longe sem atores cirúrgicos na arena sob a vigília da plateia-júri.
Um sentido de urgência move “A Missão em Fragmentos: 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa”. A peça alia cultura urbana e ancestralidade africana, DNA da trajetória do seu idealizador, o DJ, ator e diretor Eugênio Lima, aqui com o recém-criado grupo Legítima Defesa. Lima é cofundador do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, referência na fusão do teatro com a estética hip-hop.
O ponto de partida é “A Missão, Lembrança de Uma Revolução”, do alemão Heiner Müller, texto por si só sampleador de ideias e estruturas estilhaçadas. Sob intervenção da dramaturga Claudia Schapira, a peça vira pretexto para veicular a voz de pensadores pouco conhecidos, mas se- minais na crítica a formas explícitas e dissimuladas de discriminação racial.
O problema é que as citações excedem o campo do discurso, intermitente, e tornam confusa a narrativa de Müller nas idas e vindas.
No enredo central, três emissários do poder popular instituído na França após a revolução de 1789 são enviados à Jamaica para incitar escravos à revolta ante a Coroa britânica (como ocorrera no Haiti). O trio contorna as próprias diferenças de classe e de raça até a tarefa ser abortada com a ascensão de Napoleão.
A turva travessia do roteiro é compensada pela musicalidade. Evoluções rítmicas e corporais de mulheres e homens negros mostram apropriação e autoafirmação.
A narrativa fragmentária também dá o tom em “Branco - O Cheiro do Lírio e do Formol”, texto de Alexandre Dal Farra que assina a direção ao lado da atriz Janaina Leite.
Não se trata de abordar o racismo de modo frontal, mas sondar no ventre de uma família de classe média e branca os modos de doutrinação e naturalização de atitudes violentas e autodestrutivas.
As figuras do pai, do filho e da tia apresentam falas pastosas. Os corpos são largados. Há um alheamento gritante sobre o que ocorre ao redor de casa ou dentro dela.
Sendo toda a equipe branca, a autocrítica traz implicações éticas aos artistas.
A precariedade aparece desde as primeiras leituras e discussões de encaminhamento da obra, que bordeja ficção e realidade. Moram aí as lacunas para que o espectador reaja. A “branquitude” está na berlinda. QUANDO ter. e qua., às 20h; até 17/5 ONDE Centro Cultural São Paulo QUANTO R$ 1 a R$ 30; 16 anos AVALIAÇÃO bom