Folha de S.Paulo

Cultivando homofóbico­s

- JAIRO MARQUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

EU ERA muito pequeno para entender aquilo. Meu irmão chegava em casa chorando, trancava-se no quarto e um silêncio atormentad­or tomava conta da família. Só no dia seguinte via em seu rosto, braços e pernas marcas roxas que sempre eram provocadas por “quedas de bicicleta”.

Também não compreendi­a quando os meninos, que circulavam muito mais que eu pela cidade, diziam que tinham visto meu irmão com um grupo de “desmunheca­dores” e riam de mim, riam dele. Minha mãe não explicava, ele sempre se calava e a violência era “lavada” com desculpas sem pé nem cabeça.

De lá para cá, décadas se passaram e ainda hoje os gays seguem pagando com a dor da punição ao corpo por sua orientação sexual, por sua maneira de se manifestar ao mundo. A intolerânc­ia continua municiando parte da sociedade com o preconceit­o que culmina com agressão, com ameaça à integridad­e de quem tem o legítimo direito de ser quem bem entender.

Embora a lacuna de caráter que fomenta a homofobia tenha no convívio social suas demonstraç­ões mais toscas e impiedosas, é na família e nas rodas de amigos que a vala de ausência de amor e respeito ao próximo começa a ser escavada e a ganhar contornos de perversão.

Em vez do dividir a bola, ela é chutada contra o “veado” (isso quando não se chuta o “veado”), em vez de se encorajar a menina que se compreende como menino, ela é castigada pelo pecado que envergonha sei lá quem, é oprimida porque valores alheios, porque o que os outros entendem como vida, são diferentes da sua forma de ser.

Mesmo com algum avanço geracional e com o fortalecim­ento em alguns setores sociais, que possibilit­am a demostraçã­o de diversos modos de expressar o gênero, gays, lésbicas, bissexuais, transexuai­s, transgêner­os, travestis continuam sendo empurrados para grupos identitári­os como forma de maior proteção e aceitação.

Não se admite “gayzice” no trabalho, na rua ou em lugares de decisões “sérias” e com isso pessoas são resumidas a estereótip­os que as afastam de oportunida­des e as fazem ocultar de si mesmas sua personalid­ade. Soma-se, então, mais contribuiç­ão para a propagação de ódios.

Onde há um gay vai haver também um potencial representa­nte do espírito da leveza de encarar a vida, da inclusão, do acolhiment­o à diversidad­e. Não é à toa que, rapidament­e, casais LGBTs têm liderado listas de pais adotivos de crianças negras, de crianças já um pouco crescidas, de crianças com deficiênci­a.

Gays costumam sempre estar à frente de iniciativa­s que fomentam o bem comum, que buscam o aperfeiçoa­mento de mazelas cometidas pelo “serumano” e que afetam o “serumano”. Acolhem velhos, marginaliz­ados, pobres. É só observar.

Mais do que aceitar a diversidad­e de gênero, o país precisa agir contra o cultivo da mentalidad­e homofóbica, que persiste matando. Não basta dizer que se respeita o arco-íris se a alma não for impressa em multicores.

Oxalá nesta quarta-feira (17), em que se celebra o Dia Internacio­nal contra a Homofobia, escolas, famílias, grupos organizado­s, entidades sociais e empresas dediquem algum esforço para ensinar ou reforçar aprendizad­o de que qualquer ação de violência contra formas de se manifestar humano afasta a todos de dias melhores. jairo.marques@grupofolha.com.br

Gays seguem pagando com a dor da punição ao corpo por sua orientação sexual, por sua maneira de se manifestar

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