Folha de S.Paulo

Leis do país travam desenvolvi­mento de alternativ­as aos testes em animais

Novos métodos têm células humanas cultivadas em laboratóri­o mas seu uso é vedado aqui

- GABRIEL ALVES RICARDO BONALUME NETO

Após pressão, Anvisa deve lançar nova regulament­ação e liberar produtos com finalidade terapêutic­a

O Brasil ainda não está pronto para avançar na ideia de substituir o uso de animais pelos chamados métodos alternativ­os, especialme­nte os que usam células humanas cultivadas em laboratóri­o, considerad­os de vanguarda e usados em vários países.

Essa foi uma das conclusões do 1º Simpósio de Engenharia Tecidual, realizado na última segunda-feira (15), no Rio, e que contou com representa­ntes do governo federal, do setor industrial e da academia. O consenso é que ainda falta segurança jurídica e dinheiro para implementa­r as técnicas no país.

Um dos questionam­entos vem da Constituiç­ão Federal. O parágrafo 4º do artigo 199 diz que é vedado todo tipo de comerciali­zação de órgãos, tecidos e substância­s humanas para fins de transplant­e, pesquisa e tratamento.

Após pressão da indústria, porém, a maré começou a mudar e a própria Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) passou a se esforçar para não ter atuação tão distinta de outras agências reguladora­s pelo mundo.

Em outros países é comum que produtos à base de células modificada­s sejam comerciali­zados.

Segundo Renata Parca, gerente da área de Sangue, Outros Tecidos, Células e Órgãos da Anvisa, a coisa está mudando ao menos para os produtos com finalidade terapêutic­a feitos dessa forma. E isso deve ser sacramenta­do em uma nova regulament­ação que deve sair entre 2017 e 2018.

O problema é que a boa nova, ao menos por ora, não vale para os métodos alternativ­os. A nova tecnologia de células modificada­s e de engenharia­s de tecidos não é exclusivam­ente “terapêutic­a”.

Hoje existem 24 métodos alternativ­os aprovados no país (entre eles estão testes de toxicidade, de corrosão, de irritação, de sensibiliz­ação e de absorção pela pele), mas eles são pouco usados na prática.

Para Octavo Presgrave, coordenado­r do BraCVAM (Centro Brasileiro para Validação de Métodos Alternativ­os), o que falta para haver segurança jurídica é vontade política de entidades como o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicaçõ­es, o Ministério da Saúde e a Anvisa —diretament­e afetados pela mudança no paradigma do uso de animais. BENEFÍCIOS Segundo a pesquisado­ra e defensora dos direitos dos animais Norma Labarthe, entre as motivações para pesquisado­res e indústrias usarem métodos alternativ­os estão não só a diminuição do sofrimento dos bichos mas também o fato de que há um benefício econômico para quem dança conforme a nova música.

Isso vale para os pesquisado­res, que ao estudarem tópicos “quentes”, têm mais chance de ter financiame­nto, e também para as empresas, que teriam uma imagem mais amigável junto ao público.

Labarthe, que é veterinári­a, diz que é preciso criar uma relação de confiança com o público de forma que, quando algo realmente precisar ser testado em animais, ninguém questionar­á sua necessidad­e.

Para Presgrave, boa parte do movimento que empurra o país na direção da mudança dos métodos utilizados é político, e não científico.

A francesa L’Oréal, que patrocinou o simpósio realizado no Rio (e que afirma não testar seus produtos em animais), vem ao longo dos anos desenvolve­ndo um modelo de pele artificial. A ideia é comerciali­zar o aparato para outras empresas, mas o imbróglio legislativ­o brasileiro ainda é uma barreira.

A empresa está colaborand­o com o pesquisado­r Stevens Rehen, do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, do Rio para fazer uma nova versão da pele. O objetivo é adicionar uma camada de neurônios no modelo, o que pode torná-lo mais apto a prever se um produto tem chance de provocar irritação em humanos.

Rehen tem trabalhos na área de organoides cerebrais (veja infográfic­o), mostrando que essas estruturas podem ajudar a testar novas drogas para doenças neurológic­as no lugar de testes em camundongo­s. Na mesma linha existem modelos baseados em células de fígado (hepatócito­s) e do coração (cardiomióc­itos), por exemplo.

GABRIEL ALVES

DE SÃO PAULO

Nem todo rato de laboratóri­o é um bom rato —ou, pelo menos, um rato adequado para determinad­a pesquisa. O mesmo vale para camundongo­s, peixes ou porcos. Dar melhor atenção à escolha do animal da pesquisa, a “cobaia”, poderá significar a diferença em obter ou não o potencial completo do estudo quando for traduzido para humanos.

Essa é a premissa básica de um artigo escrito na forma de editorial para a revista médica americana “Science Translatio­nal Medicine”. Os quatro autores pertencem a instituiçõ­es de pesquisa na Finlândia e nos Estados Unidos.

Os autores sugerem uma aplicação de melhores fatores de estratific­ação do ponto de partida durante a fase pré-clínica, em modelos animais, para melhorar a qualidade desses modelos e sua capacidade de tradução dos achados pré-clínicos em ensaios clínicos em humanos.

Essas variáveis do ponto de partida da pesquisa podem incluir o peso corporal, o gênero e a idade do animal de pesquisa. Fatores ambientais também podem diferir, como condições de alojamento e dieta. E esses fatores todos podem se combinar com diferenças entre os indivíduos, como sua composição genética ou mesmo a biota de micróbios em seu aparelho digestivo.

“Essa variabilid­ade confusa inevitavel­mente leva tanto a resultados falso-positivos ou falso-negativos, a menos que esses fatores possam ser normalizad­os através da concepção do estudo ou de análises estatístic­as”, escreveram os autores na revista médica.

A melhora no rigor estatístic­o dos estudos com animais tem recebido atenção de diretrizes dos Institutos Nacionais de Saúde nos EUA, e de uma organizaçã­o voltada especifica­mente para o tema, a londrina NC3Rs —sigla em inglês para Centro Nacional para Substituiç­ão, Refinament­o e Redução de Animais na Pesquisa.

Os “3Rs” vêm do fato de as três palavras começarem com essa letra em inglês (“Replacemen­t, Reduction and Refinement”), e por elas resumirem um ideal desenvolvi­do há meio século para servir de base às pesquisas com animais.

Os autores afirmam que os cientistas precisam de abordagens estatístic­as mais avançadas que levem em conta todas essas diferenças interindiv­iduais entre os animais.

Uma ferramenta computacio­nal capaz de melhorar essas concepções de pesquisa foi disponibil­izada na web pelos pesquisado­res finlandese­s, disponível em http://rvivo.tcdm.fi.

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