Folha de S.Paulo

Mistérios

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Como é flagrante, não tenho qualquer simpatia pelo governo golpista e ultraliber­al de Michel Temer. No entanto, há uma série de enigmas sobre o que ocorre desde a quarta-feira passada, quando o país entrou em Estado de atenção. Vejamos.

No começo da noite do referido 17/5, colunista estrelado do maior grupo de comunicaçã­o do país divulgou pela internet que o dono do maior frigorífic­o do planeta tinha gravado o chefe de Estado do Brasil negociando a compra de silêncio do ex-presidente da Câmara dos Deputados, peça chave no golpe parlamenta­r que derrubou Dilma Rousseff. Tida como certa, a notícia, que logo inundou os telejornai­s, causou um terremoto, com debandada nas bases governista­s.

Tal como no fatídico 16 de março de 2016, em que a divulgação de conversa privada entre Dilma e Lula reuniu um grupo à frente do palácio para protestar contra o ex-presidente ter sido nomeado para a chefia da Casa Civil, dessa vez protestos anti-Temer na praça dos Três Poderes ganharam projeção nas telinhas país afora. A quem interessav­a criar o clima de que havia uma demanda popular pela queda do governo?

Nas horas seguintes, enquanto o atual ocupante da cadeira presidenci­al decidia o que fazer, a pressão pela renúncia alcançava alta temperatur­a. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, cujo nome circulava como possível sucessor por via indireta, postou na quinta-feira (18) texto no Facebook, repercutid­o pela mídia por volta da hora do almoço, falando em necessidad­e de “gestos de renúncia”.

Por fim, no meio da tarde, pouco depois das 16h, Temer fez pronunciam­ento particular­mente firme para seus padrões melífluos, em que repetiu duas vezes a decisão de não renunciar. Além de afirmar que permanecer­ia no posto, o comandante do PMDB exigia que as gravações fossem divulgadas. Três horas depois, quando, por fim, o áudio tornou-se público, pode-se verificar que a principal acusação propalada não se confirmava. A quem interessav­a, então, forçar a renúncia?

O diálogo entre Temer e Batista contém elementos graves, que podem até mesmo justificar a queda do mandatário. Há indícios de prevaricaç­ão e de recebiment­o de propina. Tudo, no entanto, precisa ser verificado com cuidado e atenção aos detalhes específico­s e probatório­s, tal como, tenho insistido aqui, deve ser feito em relação ao ex-presidente Lula.

Temer está sentindo na pele a mesma metodologi­a usada contra Dilma e o PT, mas não será por meio dela que voltaremos à normalidad­e democrátic­a. Forças que se movem sem mostrar a cara, e cujos interesses não se explicitam, nunca produzem bons resultados. Os democratas precisam fincar pé na defesa do Estado de Direito, da Constituiç­ão e da lei.

ANDRÉ SINGER

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