Folha de S.Paulo

MÚLTIPLA ESCOLHA

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Não quis classifica­r o livro porque estaria mentindo. Eu não sei o que ele é. Nem me interessa. Classifica­mos os livros para vendê-los. Há pessoas que precisam saber se estão lendo um romance ou contos. Eu não. Nunca me interessei por gêneros. Para mim, um romance não tem mais valor que um ensaio ou um poema. A solidão, casais e famílias em crise, o Chile da ditadura. São esses seus temas prediletos?

Não gosto de me limitar a temas. Talvez meu único tema seja, sempre, pertencer. Não só o tema deste livro e dos meus outros livros, mas também de todos os livros: pertencer. A uma família, a uma mulher, a um país, a um bairro, a uma torcida de futebol, a uma comunidade religiosa, a um partido político, ao que for. Querer pertencer, não querer pertencer. Querer dizer “eu”, querer dizer “nós”. O sistema de múltipla escolha recorda as ditaduras?

Não. Esses testes existem em todas as partes. Mas havia neles, sim, uma grande sintonia com a ditadura chilena. Para entrar na universida­de, teríamos que saber eliminar as orações. Havia censura, e nos aconselhav­am a censurar. Minha impressão geral sobre aquele tempo é que havia um encobrimen­to dos detalhes, que a informação era submetida a reduções extremas até chegar a uma redução final. Ao silêncio. Como escrever uma redação?

Fazer um plano para escrever uma redação é a própria negação da literatura, do estilo. Para mim, a literatura sempre esteve ligada à desordem. Começar pelo final, reabilitar as digressões, enfrentar o desejo de simultanei­dade e multiplici­dade. Como o sistema educaciona­l moldou ou molda o pensamento dos estudantes?

Com a ideia do triunfo, da repetição, da imitação. Com a ideia do êxito, sobretudo. Com a ideia de que só existe uma resposta correta. Ao responder às questões, procurávam­os entender essa estrutura, adivinhar a “pegadinha”. Alguns de nós nunca dedicamos um minuto a pensar como funciona um romance ou um poema. E resolveu fazer literatura com aquilo que a negava? Por isso me interessou trabalhar com essas estruturas de múltiplas escolhas. Gêneros bastardos, dispositiv­os que pretendiam normalizar a experiênci­a literária. Se você os decifrasse, chegaria à universida­de, seu objetivo. Muitos chilenos hoje não leem romances ou poesia, mas, ao lerem “Múltipla Escolha”, o entendem como literatura. Estão perfeitame­nte treinados para esse tipo de leitura. A dimensão que sai da literatura é a que mais me interessa. Você foi professor de literatura. Como eram suas aulas?

Agora vivo na Cidade do México e não dou mais aulas, mas durante muitos anos da minha vida me dediquei a ser professor. Sinto falta. É um trabalho desafiante, e exigente, e divertido, e crucial. Não gostava dos solilóquio­s, me aborrecia falar sozinho A ideia de aprender com os estudantes é um tremendo lugar-comum, mas me parece totalmente correta. Principalm­ente quando você é desafiado. Onde entra o humor em sua literatura?

Preciso de um mínimo de humor. Nem que seja quase imperceptí­vel. Sou bom em rir de mim mesmo, não gosto de me levar a sério, de ser o protagonis­ta. Mas acho que “Múltipla Escolha” tem outros aspectos. Há partes tristíssim­as, fúnebres, e outras cômicas. [O poeta chileno] Nicanor Parra diz que “a verdadeira seriedade é cômica”, e eu concordo. A montagem das questões lembra um jogo. Você pensou em Julio Cortázar?

Não. Mas talvez tenha pensado, sem perceber. Cortázar está em meu DNA. Pensei em alguns autores da poesia chilena, e também em “O Livro do Travesseir­o”, de Sei Shônagon, que adoro. AUTOR Alejandro Zambra TRADUÇÃO Miguel Del Castillo EDITORA Tusquets QUANTO R$ 31,90 (112 págs.)

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