Folha de S.Paulo

Jean Starobinsk­i faz biografia fascinante sobre a melancolia e a cultura ocidental

- JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA

FOLHA

“A Tinta da Melancolia” é uma fascinante (auto)biografia. De um lado, os ensaios reunidos no livro apresentam a história cultural da melancolia ao longo de três milênios. De outro, compõem a autobiogra­fia intelectua­l do suíço Jean Starobinsk­i.

O volume, dividido em seis partes, cobre cinco décadas de pesquisa. A primeira, “História do Tratamento da Melancolia”, é a tese de doutorado do autor, publicada em edição não comercial em 1960. O texto mais recente, “Os Ruídos da Natureza”, saiu em 2008.

No prefácio à edição francesa (2012), Starobisnk­i esclareceu: “Por mais de meio século, vários temas ou motivos ligados à melancolia orientaram meus textos”.

Acompanhar os diagnóstic­os (e as terapêutic­as) da melancolia implica mapear a própria cultura ocidental. Afinal, “Homero, que está no começo de todas as imagens e de todas as ideias, nos faz captar [...] a miséria do melancólic­o”.

Na Grécia clássica surgiu o primeiro diagnóstic­o, com base no sistema dos quatro humores que governaria­m o corpo, afetando a alma. À bile negra se atribuíram os males do melancólic­o. A terapêutic­a adequada expulsaria a inconvenie­nte atrabílis do organismo. Daí a busca de laxantes e eméticos, a fim de purgar o humor sombrio. O protagonis­mo coube ao “heléboro —que permanecer­á durante séculos o específico da bile negra”.

No Renascimen­to, a concepção humoral vestiu personagen­s célebres. Na tradução impecável de Lawrence Flores Pereira, assim se expressa o Príncipe da Dinamarca: “[...] não é só meu manto cor de tinta, / Nem roupas habituais de tom solene e lúgubre”. Metonímia implacável, a bile negra envelopa o corpo do paciente.

No século 18, a longa duração conheceu uma ruptura decisiva: em 1765, Anne-Charles Lorry distinguiu a clássica “melancolia humoral” da moderna “melancolia nervosa”. Circunstân­cia ímpar: “instante [...] em que a concepção nova surge ao lado da teoria antiga”. Esboçava-se a psiquiatri­a do século 19, pois não mais se tratava de expelir uma substância do organismo.

Esse processo de subjetivaç­ão da doença correspond­e à internaliz­ação do narrador na história do romance, num anúncio da psicanális­e e do investimen­to na linguagem como acesso ao inconscien­te.

Por isso, Starobisnk­i encerrou sua pesquisa num ano-emblema: “Os psiquiatra­s de 1900 aceitaram reconhecer que a cura é obra do médico apenas em pequena medida”. Ano de publicação da “Interpreta­ção dos Sonhos”, de Sigmund Freud.

Para o leitor brasileiro, “A Tinta da Melancolia” guarda um sabor especial. Por exemplo, recorde-se o riso de Demócrito. Recluso, ele “ri indiferent­emente de tudo”. Alarmados, os cidadãos de Abdera recorreram a Hipócrates.

Após escutar a amarga lucidez do filósofo, o pai da medicina concluiu que o misantropo era o único sensato e que loucos eram todos os abderitas. Nessa Casa Verde às avessas, o Simão Bacamarte machadiano é Hipócrates e Demócrito num só personagem!

Brás Cubas definiu sua “obra de finado” com dicção inconfundí­vel: “Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Nessa alquimia alegre dos versos sombrios de Charles d’Orléans, Machado de Assis inventou um universo ficcional e, mais uma vez, pela reunião complexa de termos contrários.

Não posso encerrar sem destacar o brilhante posfácio de Fernando Vidal: introdução perfeita para o conjunto da obra de Jean Starobinsk­i. JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA AUTOR Jean Starobinsk­i TRADUÇÃO Rosa Freire D’Aguiar EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 74,90 (568 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

 ?? Swiss National Library ?? Suíço Jean Starobinsk­i retratato em sua biblioteca em 2010
Swiss National Library Suíço Jean Starobinsk­i retratato em sua biblioteca em 2010

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