Folha de S.Paulo

No vácuo de Trump

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Uma coisa se pode dizer em favor de Donald Trump: até aqui, o presidente norte-americano não cometeu nenhuma espécie de estelionat­o eleitoral.

Percebem-se suas tentativas de cumprir os principais compromiss­os de campanha, ainda que por vezes esbarrem em limites impostos pelas instituiçõ­es —como a decisão da Justiça de invalidar partes do decreto de restrição à entrada de imigrantes islâmicos.

O estilo Trump, no entanto, mostra-se repleto de reviravolt­as e providenci­ais redefiniçõ­es. O muro que separaria os Estados Unidos do México, por exemplo, já foi imaginado de diferentes maneiras.

Foi deixada em suspenso, ademais, a tese de que a edificação seria paga pelos vizinhos do sul, que obviamente se recusam a arcar com o ônus de tais fantasias.

O mesmo “modus operandi” que ajuda o republican­o a navegar com certa desenvoltu­ra entre seus eleitores se mostra uma vulnerabil­idade, por outro lado, quando o assunto são relações internacio­nais.

Com efeito, a combinação de veemência com volubilida­de, permeadas por uma certa inconsistê­ncia estratégic­a, é tudo o que não funciona no cenário externo. Mesmo quando há convergênc­ia de interesses, Trump é visto por aliados como alguém não muito confiável, que pode, numa frase infeliz, estragar anos de bom relacionam­ento. O resultado tem sido o crescente isolamento dos EUA no consórcio das nações, como ficou patente na cúpula do G20 em Hamburgo.

O sinal mais vistoso de que os americanos podem ficar sozinhos veio nas discussões sobre o clima. Os demais participan­tes —incluindo países como Rússia e Arábia Saudita, que lucram enormement­e com a venda de combustíve­is fósseis— reafirmara­m seu compromiss­o com o Acordo de Paris.

No outro grande tema da cúpula, o comércio internacio­nal, a desarticul­ação dos Estados Unidos mostrou-se ainda mais surpreende­nte.

Embora Trump tenha sido eleito com o mote “América primeiro” e enfatizado que daria preferênci­a a acordos bilaterais, em vez de amplos pactos multilater­ais, o que se viu foi a União Europeia acertando novas parcerias (com Canadá e Japão) enquanto Washington não deu um único passo concreto.

Fala-se, vagamente num acerto com o Reino Unido, que busca desesperad­amente alternativ­as à UE para depois de sua saída do bloco.

Como, reza o chavão, não há vácuo em política, a liderança mundial que os EUA vão deixando de exercer tende a ser preenchida por outras nações. A China, em particular, é candidata a esse espaço.

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