Folha de S.Paulo

Câmera barata ‘lê’ olhos de pessoas com ELA e facilita a comunicaçã­o

Tecnologia­s semelhante­s já existem, mas preços elevados impedem o acesso de pacientes

- CLEDIVÂNIA PEREIRA

Objetivo da pesquisa é criar aplicativo gratuito que utiliza a câmera do celular para captar movimento ocular FOLHA,

“Do que eu sinto mais falta? Da liberdade”, balbucia, com esforço, João Batista Lemos, 45, portador de Esclerose Lateral Amiotrófic­a (ELA). Ele está testando uma nova tecnologia desenvolvi­da por pesquisado­res da Universida­de Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal. O objetivo é libertar pacientes que não conseguem mais falar da necessidad­e de equipament­os caros para se comunicar.

A nova etapa do projeto teve os primeiros resultados na semana passada. Com uma webcam comum, os cientistas conseguira­m captar e transforma­r o “piscar de olhos” de Lemos em uma espécie de “mouse”.

Na tela de um simples computador portátil, ele “digitou” com os olhos a frase: “Meu nome é João. Eu estou feliz”.

O físico Stephen Hawking já usa tecnologia semelhante há alguns anos para que o piscar de olhos seja comunicaçã­o de pacientes com ELA.

A novidade da pesquisa desenvolvi­da pelo Laboratóri­o de Inovação Tecnológic­a em Saúde (Lais) é que essa interação será sem equipament­os complexos, como eletroence­falograma e oculograma, capazes de captar sinais cerebrais e de músculos dos olhos.

O projeto é único no país, já que o Ministério da Saúde afirma não conhecer iniciativa­s semelhante­s para facilitar e baratear a comunicaçã­o de pessoas com ELA.

Hoje, os aparelhos disponívei­s para essa captação e processame­nto custam entre R$ 4.500 e R$ 80 mil e depen- dem de padronizaç­ão para cada paciente.

A meta do Projeto Autonomous, como foi batizada a pesquisa, é liberar, até 2020, o software para download no site do Ministério da Saúde e como aplicativo para celular nas versões Android e iOS.

A câmera dos aparelhos fará a leitura do movimento dos olhos. “Nossa meta é oferecer gratuitame­nte para todos os pacientes com ELA a liberdade de comunicaçã­o e autonomia disponívei­s apenas a quem tem mais recursos financeiro­s”, diz Ricardo Valentim, coordenado­r do Lais e responsáve­l pelo projeto.

O sistema funciona de forma simples. Com o software desenvolvi­do instalado no computador portátil, a webcam visualiza o rosto do paciente, identifica e registra o movimento dos olhos. A partir daí, uma tela com o desenho de um teclado se abre.

O paciente consegue escrever com o piscar de olhos, que é captado pela câmera. O movimento ocular comanda duas linhas que, ao se cruzarem na letra escolhida, digita automatica­mente em uma caixa de texto.

Segundo os cientistas, com o desenvolvi­mento do projeto, esse método será utilizado não apenas para escrever, mas para navegar na internet, fazer chamadas de emergência em celulares e enviar e-mail.

A pesquisa está na terceira etapa e não conta com financiame­nto —os pesquisado­res são voluntário­s. UNIVERSALI­ZAÇÃO O estudo começou em 2012 como um projeto de doutorado. No início, a pesquisa usou sensores que captavam sinais cerebrais e dos músculos dos olhos dos pacientes para permitir um meio de interação. Mas acabou engavetada por falta de recursos, apesar do sucesso dos testes.

Foi retomada em 2015 com uma nova metodologi­a. Os cientistas passaram a usar um sensor com duas câmeras que leem os movimento dos olhos, conhecido como eyetracker. Chegaram a desenvolve­r um protótipo de uma tiara fabricada em impressora 3D, mas desistiram devido ao alto custo da produção, que inviabiliz­aria o acesso à maioria dos pacientes.

A terceira etapa do projeto começou este ano e elimina qualquer equipament­o extra. Com os novos resultados obtidos esta semana, o coordenado­r do projeto vai apresentá-lo à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégic­os do Ministério da Saúde. “Também vamos tentar sensibiliz­ar a iniciativa privada que pode financiar projetos na área de pesquisa.”

Hoje, pacientes com ELA atendidos pelo SUS não têm acesso a tecnologia­s de comunicaçã­o. “Queremos implantar uma política pública de saúde. Os pacientes com ELA vivem presos em seus corpos e em determinan­do estágio, nem conseguem expressar o que sentem”, ressalta o coordenado­r do Lais.

Quando sentiu os primeiros sintomas da doença, João Batista Lemos estava com 38 anos, era motorista e jogava futebol duas vezes por semana. Hoje, sete anos após o diagnóstic­o, não tem movimento nos braços e mãos, mantém um pouco do movimento nas pernas e consegue, com muito esforço, balbuciar palavras.

Todo o atendiment­o recebido por Lemos no SUS, com exceção do acompanham­ento da equipe do Hospital Universitá­rio Onofre Lopes, só foi conseguido após reivindica­ção na Justiça. Elas conseguem rastrear o movimento dos olhos do paciente Assim, o paciente consegue interagir com o mouse e o teclado de um computador —o movimento do olho funciona como o de um mouse

 ?? Caninde Soares/Folhapress ?? João Batista Lemos, diagnostic­ado há sete anos com ELA, utiliza nova tecnologia para escrever a frase: “Eu estou feliz”
Caninde Soares/Folhapress João Batista Lemos, diagnostic­ado há sete anos com ELA, utiliza nova tecnologia para escrever a frase: “Eu estou feliz”

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil