Folha de S.Paulo

Narcisismo de Beyoncé coroa cruzada antirracis­ta

Evocando pose da Virgem, cantora anuncia nascimento de gêmeos em imagens cafonas depois de álbum radical

- SILAS MARTÍ

Na imagem mais popular da história do Instagram, Beyoncé aparece ajoelhada de perfil, só de calcinha e sutiã, coberta por um véu esverdeado com as mãos envolvendo a barriga grávida de seus gêmeos Sir Carter e Rumi. Flores emolduram a cantora, uma espécie de aura vegetal contra um plácido céu azul.

Mais de 11 milhões de pessoas deram dois tapinhas na tela do celular para curtir a fotografia. Agora, na primeira aparição dos novos rebentos que vem abalando as redes sociais desde a semana passada, quase 10 milhões de fãs viram e gostaram de uma imagem semelhante —moldura floral e lingerie, com a diferença que os dois recémnasci­dos aparecem equilibrad­os nos braços da maior estrela do pop da atualidade.

Mesmo sendo um fenômeno da era dos memes e curtidas, Beyoncé resgatou nessas imagens estratégia­s da iconografi­a cristã em voga desde tempos medievais. Seu manto azul remete à pureza, aos céus e à nobreza. O vestido — no caso aqui, só uma espécie de roupão que deixa ver uma barriga sequinha mesmo pósparto— deveria ser vermelho, mas seu violeta ou lavanda estampado já dão outra ideia de amor, paixão e devoção.

Menos conceitual, aliás, sua flexibiliz­ação do espectro de cores tem a ver com o fato de a Gucci ter feito da gravidez da diva uma espécie de comercial em nove meses, patrocinan­do cada um de seus looks, a maioria de estampa floral e tons esverdeado­s, a mesma paleta tie-dye desidratad­a que domina a coleção mais recente da grife italiana.

Marketing à parte, Beyoncé, que destronou Madonna como a rainha do pop, agora quer voltar a uma Itália mais remota e se reafirmar com a pose das célebres “Madonna con Bambino” que povoam os afrescos das igrejas renascenti­stas. É uma espécie de autocoroaç­ão da nova majestade —ou divindade— do pop.

Rainha de uma corte eletrônica, com quase 100 milhões de súditos no Instagram, Beyoncé deu à luz imagens que extrapolam qualquer limite do cafona, trazendo para o desarranjo da vida real artifícios que funcionara­m só na pintura.

Fãs da cantora viram em sua expressão lânguida e na pose, com uma perna um pou- co à frente da outra, uma versão pop da Vênus de Botticelli, mesmo que a pintura renascenti­sta mostre uma moça muito mais pudica, com os cabelos cobrindo o sexo, e um ar de indiferenç­a confusa.

Em outros retratos feitos debaixo d’água, Beyoncé aparece grávida ainda envolta em véus multicolor­idos, evocando uma espécie de “Ofélia” de Gustav Klimt caso o austríaco trabalhass­e para a MTV.

Mas a cantora, mesmo quando se quer angelical, transborda erotismo. E fez de um corpo de curvas lustrosas e volumes avantajado­s uma de suas maiores armas no showbusine­ss, aliado a uma voz poderosa cada vez mais a serviço de letras que exaltam a negritude em tempos de supremacis­tas brancos raivosos.

Não espanta que depois do delírio visual que foi “Lemonade”, o álbum-filme que consagrou a cantora como a maior diva do pop dos últimos tempos, ela tenha deixado qualquer pudor de lado para celebrar o nascimento de seus gêmeos com uma explosão de imagens bregas e narcisista­s.

Nas entrelinha­s, Beyoncé está dizendo não se importar com o que o mundo vai pensar. E o nome de seu primeiro filho, Sir Carter, já traz embutido um título de nobreza, afirmando que ela e seu marido, o rapper Jay Z, são tudo que dizem a seu respeito — rei e rainha da indústria da música nos Estados Unidos.

Mais do que isso, são os rostos mais venerados de uma realeza negra e americana.

Ou seja, a Beyoncé-Virgem Maria é a apoteose caricatura­l da artista depois de outros atos de maior voltagem política, como quando ela cantou no Super Bowl, maior evento esportivo dos Estados Unidos, com o uniforme dos Panteras Negras, grupo de militância armada que combateu a segregação racial no sul americano.

Num ato de sabotagem de um ícone máximo da cultura ocidental, Beyoncé se coloca acima do plano terreno e se diz mãe, senhora, rainha e —por que não deusa?— do mundo anestesiad­o, raso e narcísico das redes sociais.

Rumi e Sir Carter, os irmãos mais novos de Blue Ivy, a primeira filha da cantora, vêm ao mundo num ato orquestrad­o de moda, marketing, ativismo político e celebração vazia —os motores mais poderosos desses tempos perigosos e bobos que a humanidade tenta atravessar.

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Reprodução Beyoncé em foto do Instagram com os gêmeos recém-nascidos, Rumi e Sir Carter; abaixo outras imagens que ela postou
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