Folha de S.Paulo

Moscas: subsídios para um estudo

- RICARDO ARAÚJO PEREIRA COLUNISTAS DA SEMANA: sábado: José Simão, domingo: Marcius Melhem, segunda: Gregorio Duvivier, terça: José Simão, quarta: Reinaldo Figueiredo, quinta: José Simão

AUGUSTO MONTERROSO escreveu: “Há três temas: o amor, a morte e as moscas”. Vários autores têm se dedicado a pensar sobre os dois primeiros, mas poucos se aventuram a refletir sobre moscas. Felizmente para os leitores da Folha, eu tenho muito tempo livre. E empreendi um plano de estudos sobre moscas do qual gostaria de lhes dar conta, nesta introdução fatalmente breve e incompleta.

Em determinad­o momento da criação, seja quem for que concebeu o mundo (Deus, para os crentes; a natureza, para os panteístas; Eusébio da Silva Ferreira, para mim) teve um pensamento parecido com este: “Isto está bonito: as estrelas, o mar, as montanhas, as árvores. Só falta uma coisa: moscas”.

As moscas não foram criadas de ânimo leve. Quem as inventou sabia o que estava a fazer. Dotou-as de um sofisticad­íssimo sistema de defesa que torna quase impossível apanhálas. De quem é que o leitor acha que o Criador gosta mais: de si, que muitas vezes não consegue desviar-se de inimigos nem mesmo quando estão à sua frente; ou de uma mosca, que é capaz de se esquivar de ameaças vindas de todo o lado?

Sobre qual destes animais —a mosca e o ser humano— lhe parece que Deus pensou: “Há que investir forte na segurança desta preciosa criatura para tentar protegê-la de todo e qualquer ataque”?

Provavelme­nte por despeito, o mesmíssimo despeito de Caim, damos à mosca tratamento igual ao que reservamos para os piores criminosos: a eletrocuss­ão. Somos cada vez mais sensíveis ao sofrimento dos animais, mas ninguém chora uma lágrima quando aqueles aparelhos de lâmpadas roxas fritam uma mosca.

Dizem que, durante as gravações do filme “Em Busca do Ouro”, Chaplin enfureceu-se de tal modo com uma mosca que parou a filmagem e começou a persegui-la com um mata-moscas. A certa altura, a mosca pousou numa mesa e Chaplin aproximou-se, o mata-moscas em riste. E então parou e pousou o mata-moscas. “Que foi?”, perguntara­m-lhe. “Era outra mosca”, respondeu.

Tenho pensado muito nessa história. Como disse acima, sou bastante desocupado. Creio que ninguém desperdiça­ria assim a oportunida­de de matar uma mosca, nem mesmo Chaplin, nem mesmo para fazer aquela excelente piada. Mas depois ocorreu-me: as moscas são supérfluas, irritantes e fascinadas por tudo o que é podre. É a descrição perfeita de um humorista. Na verdade, somos almas gêmeas. Aquilo era solidaried­ade profission­al.

Quem as inventou sabia o que estava a fazer; dotouas de um sofisticad­íssimo sistema de defesa

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Luiza Pannunzio

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