Folha de S.Paulo

Irrealismo

Proposta de adotar o regime parlamenta­rista, embora meritória, tem chance quase zero de prosperar na atual conjuntura de crise política

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Um bom indicador de que o Brasil vive uma crise política aguda é o ressurgime­nto da defesa do parlamenta­rismo —uma solução sempre lembrada em momentos de fragilidad­e do presidente.

Desta vez, fala-se na instalação de uma comissão especial no Congresso para examinar o tema, à qual anuiu o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE).

Constatou-se inclusive que está disponível uma proposta de emenda à Constituiç­ão que institui esse regime de governo, datada de 1995 e pronta para votação no plenário da Câmara dos Deputados.

Convém discernir o que o debate tem de meritório e de casuístico —além de pouco realista.

Há muito esta Folha considera o parlamenta­rismo mais moderno e funcional que o presidenci­alismo. Os argumentos renovam-se com os acontecime­ntos mais recentes: dos quatro chefes de Estado eleitos após a redemocrat­ização, dois foram depostos; agora, temos um presidente acusado de corrupção no exercício do mandato.

Por imperfeito­s que sejam todos os sistemas, a entrega do comando do governo a um primeiro-ministro apontado pelo Legislativ­o mostra vantagens consideráv­eis.

Facilita-se a resolução de crises, ao permitir a dissolução sem traumas de gabinetes desacredit­ados e, nos casos mais graves, a antecipaçã­o de eleições.

Em grande medida, ademais, o regime favorece uma ação mais consequent­e da maioria dos deputados e senadores, que se tornam correspons­áveis pelos êxitos e fracassos da administra­ção federal.

Mas, se inexiste dúvida de que o país necessite proceder com urgência a uma reforma política, tampouco se vê sinal de que uma proposta tão complexa como a adoção do parlamenta­rismo possa amadurecer em pouco tempo.

A mudança implicaria amplo redesenho institucio­nal, não limitado à escolha e ao funcioname­nto do Congresso. No Executivo, por exemplo, o exército de assessores nomeados, sujeitos a substituiç­ão a cada troca de guarda no Palácio do Planalto, teria de dar lugar a uma burocracia estável.

Na atual conjuntura política, em que o prestígio dos parlamenta­res é mínimo, parece mais recomendáv­el o foco em aperfeiçoa­mentos mais pontuais —seriam grandes avanços, nesse sentido, o voto distrital misto e uma cláusula de desempenho capaz de reduzir a proliferaç­ão de partidos.

No mais, recorde-se que os brasileiro­s mostram desconfian­ça histórica quanto à mudança do regime de governo. Já houve duas consultas populares sobre a matéria, e o presidenci­alismo saiu vitorioso em ambas, nos anos de 1963 e 1993.

A lealdade democrátic­a exigiria que uma nova investida no tema se desse também por meio de plebiscito, a fim de que não pareça mero conchavo parlamenta­r.

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