Folha de S.Paulo

Concordo, mas por isso mesmo o diálogo é importante.

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Durante a reunião da SBPC do ano passado, em Porto Seguro, a sra. foi duramente criticada por negociar com o governo Temer, chegou a ser chamada de pelega e quase entregou o cargo. Desta vez, manifestaç­ões contra Temer terminaram com elogios à sra. A sensação é de volta por cima?

Eu acho o seguinte: o que aconteceu em Porto Seguro ficou em Porto Seguro. Essa nova postura é a prova de que as pessoas entenderam que há necessidad­e de diálogo para se construir o Brasil que a gente deseja ter. Mais importante que isso, porém, foi o reconhecim­ento de que, ao lado dos erros, eu tive uma série de acertos que vão impactar de modo positivo o futuro da ciência brasileira.

Se a gente não tivesse mantido esse diálogo, o Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação [que deu mais liberdade para interações entre cientistas e setor privado] talvez tivesse sido outro, e quem teve protagonis­mo nesse processo foi a sociedade, não o Estado. Diante dos cortes orçamentár­ios brutais que afetaram o financiame­nto público da ciência no Brasil, a sra. acha que faltou planejamen­to nos anos de expansão da área no país, no segundo governo Lula e no primeiro governo Dilma? Teria sido possível evitar o pior desses cortes hoje se esse cresciment­o tivesse sido planejado com mais cuidado?

Eu acho que não. O presidente Lula não abriu a porta do cofre imediatame­nte. Primeiro veio a busca pela estabilida­de. No segundo mandato, houve um aumento impression­ante do financiame­nto da ciência e tecnologia, bem como uma expansão do sistema educaciona­l que era necessária.

Nossa economia, porém, ainda não é estável. Tivemos um pico de investimen­tos no mandato da presidenta Dilma, que ainda era reflexo do mandato de Lula, mas, quando a economia começa a patinar, vêm também as quedas no orçamento para a pesquisa.

Inicialmen­te, isso não ficou tão claro porque o montante destinado ao Ciência Sem Fronteiras era muito elevado, mas isso mascarou uma queda cada vez mais vertiginos­a do dinheiro que ia para o CNPq [principal órgão federal de fomento à pesquisa]. Ficou claro que precisamos de fontes mais constantes de financiame­nto.

Isso acabou culminando com o que a gente chamava de PEC do Fim do Mundo, que hoje já é a emenda constituci­onal do teto de gastos. A SBPC se posicionou claramente contra incluir a educação, a ciência, a tecnologia e a inovação nesse teto, e a nossa intenção é continuar lutando para que isso seja revertido. Como eu sempre digo, educação e ciência não são despesa, são investimen­to, e são o único caminho para colocar o Brasil no rumo certo de novo. A sra. acha realista manter a campanha por essas alterações na emenda? Mesmo com as dificuldad­es políticas do governo Temer, tem sido difícil evitar que o Congresso aprove medidas de austeridad­e.

Acredito que sim. Na terça e na quarta passadas, tivemos dois dias fantástico­s no Congresso, em reuniões organizada­s pela Frente Parlamenta­r de Ciência, Tecnologia, Pesquisa e Inovação, com todos buscando alternativ­as e novas fontes de financiame­nto.

O papel do deputado Celso Pansera [PMDB-RJ, ex-ministro da Ciência] tem sido muito importante. Tivemos a Marcha Pela Ciência na Câmara, pela qual passaram os líderes de todas as bancadas. Acho que isso ajudou o pessoal a perceber que o diálogo é que constrói os avanços. Durante a reunião deste ano houve discussões de bastidores sobre a possível criação de um partido político dos cientistas brasileiro­s, e há quem defenda o seu nome como candidata a deputada federal. Como vê essa movimentaç­ão?

Olha, está escrito no estatuto da SBPC que ela não tem partido. Essa discussão, portanto, é de pessoas, não da SBPC. Na minha visão, seria o fim da ciência porque, no momento em que ela se torna partidária, ela não inclui, passa a separar as pessoas. É muito mais importante um movimento pela ciência percolando todos os partidos.

Pode escrever: não sou candidata e, aliás, fiquei chateada com essa história toda. Voltando ao seu otimismo em relação ao diálogo com o Legislativ­o, essa conversa não tem ficado mais difícil durante o governo Temer? No que diz respeito à legislação ambiental e à questão indígena, a impressão é que tem aumentado a resistênci­a do Congresso a levar as evidências científica­s em conta. Está mais difícil mobilizar cientistas politicame­nte hoje? A descrença generaliza­da em relação à política também afetou a comunidade científica, certo? Não é estranho, diante dos cortes de verba, que a mobilizaçã­o não seja mais intensa?

Não sei te explicar o porquê dessa situação. As pessoas talvez estejam desanimada­s, com aquela sensação de que não adianta mais lutar, então que cada um cuide de si. Para mim o que importa é que a gente pode, sim, tentar unir as pessoas num projeto comum.

É importante que nas próximas eleições presidenci­ais a gente exija de cada candidato que assuma uma plataforma clara, verdadeira, do que pretende fazer em relação à ciência e deixe isso por escrito, de maneira que os cientistas possam cobrar. É algo que infelizmen­te não constou do programa de governo da presidente Dilma de forma clara, nem da Ponte para o Futuro do Temer, na qual não havia uma palavra sobre o tema.

Na minha visão, [criar o partido dos cientistas] seria o fim da ciência porque, quando ela se torna partidária, passa a separar as pessoas. É mais importante um movimento percolando todos os partidos

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