Folha de S.Paulo

Americano faz obra exemplar do ‘realismo histérico’

- CAMILA VON HOLDEFER

FOLHA

Cunhado pelo crítico James Wood em um ensaio de 2000, o conceito de “realismo histérico” ajuda a definir certos romances extensos, ambiciosos e repletos de subtramas. Tornou-se lugar-comum evocar o ensaio (e o termo) para analisar alguns dos melhores trabalhos de Zadie Smith, Don DeLillo ou Thomas Pynchon. Recorro a ele para apontar um detalhe decisivo em “O Último Grito”, de Pynchon.

Seus personagen­s, em grau mais elevado que os de outros autores do realismo histérico, são propensos a descobrir ou imaginar complôs mirabolant­es, enxergar conexões, traçar paralelos. Como nota Wood, é evidentequ­eoqueosmov­eé,em boa medida, a paranoia.

Em seguida, observa que a obsessão de um personagem pelas conexões —e a própria obsessão de um autor por uma estrutura em que um fato esteja ligado a outro, que está ligado a outro, e a outro, e a outro— lembra a maneira como as informaçõe­s estão dispostas e articulada­s na internet.

Assim, não é preciso muito para entender que a paranoia pynchonian­a encontra a expressão ideal em trama que depende fortemente da internet. Publicado em 2013 com o título de “Bleeding Edge”, o oitavo romance do americano parte do estouro da bolha pontocom no início do milênio.

Como todo livro de Pynchon, este também é impossível de resumir sem reduzir o conjunto a uma fração mínima daquilo que ele de fato representa e engloba.

Maxine Tarnow é uma investigad­ora de fraudes fiscais. Desde o início, fica claro que o ponto forte de Maxine é a capacidade de encontrar padrões —o que não surpreende, sendo ela o eixo principal da miscelânea.

Na primavera de 2001, ela passa a investigar uma empresa de informátic­a que não só não faliu como parece crescer. Tudo aponta para algum tipo de fraude que pode não ser tão simples quanto a evasão fiscal.

Em “Submundo”, a Nova York de DeLillo é a cidade contemplad­a sem pressa, cada detalhe inventaria­do e examinado para que se extraia tanto o substrato da vida cotidiana quanto o que Henry Miller chamou, em “Sexus”, de “algarismos manipulado­s por mãos invisíveis num cálculo que não nos diz respeito”.

Já a Nova York de Pynchon em “O Último Grito”, embora se possa extrair dela o mesmo que se pode extrair da de DeLillo, é mais frenética —para usar uma adaptação do termo de Wood, mais histérica.

Pynchon entrega rápidos vislumbres de sentido, quase todos descritos com o senso de humor peculiar do autor. É preciso muita atenção para enxergar o que ele se dispõe a registrar.

O descompass­o se deve à evidente diferença de estilo entre os autores, mas também a um fato nada desprezíve­l: os dois livros foram escritos, respectiva­mente, antes e depois do 9/11. No caso de “O Último Grito”, essa é mais uma das chaves da trama. AUTOR Thomas Pynchon TRADUÇÃO Paulo Henriques Britto EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 79,90 (584 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

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