Folha de S.Paulo

CRÍTICA Obra envolvente disseca intimidade e amor

Jornalista Milly Lacombe usa fim de relacionam­ento como ponto de partida para ‘O Ano em que Morri em Nova York’

- ANA RIBEIRO

FOLHA

O que se desfaz quando uma história de amor acaba? No fim do casamento de dez anos com Tereza, Milly Lacombe perdeu mais do que o pacto de casal que havia entre elas. Perdeu a si mesma.

Já fazia muito tempo que a jornalista usava os olhos apaixonado­s das companheir­as para encontrar a própria imagem. Ela é uma mulher de grandes amores (femininos), de longos casamentos e relacionam­entos que não terminam, apenas se transforma­m em amizades eternas —traçado comum para as histórias de amor no mundo lésbico.

O fim do relacionam­ento de dez anos quebrou o espelho em que se acostumara a enxergar o seu próprio reflexo.

Não estou aqui cometendo nenhuma indiscriçã­o. Faz 15 anos que as dores e amores da jornalista Milly Lacombe têm sido a matéria-prima de suas colunas nas revistas “Trip” e “TPM”. No livro “O Ano em que Morri em Nova York”, ela retoma vários desses relatos e chega à tal da morte do título.

Ao deixar para trás o casamento em Nova York, perde de uma tacada só a cidade para a qual tinha se mudado como projeto de vida do casal, a casa que dividia com a mulher, o meio de vida possível pela combinação de tarefas e despesas, e por fim a identidade.

Ficar sem amor é também uma tomada de consciênci­a de que só se reconhece como a metade de um casal. E mais: que sozinha não se sente pessoa inteira. Chega ao Brasil vazia e parte em busca da outra metade que a completari­a. E que, claro, estava dentro dela.

A viagem de autoconhec­imento começa com um retiro xamânico na Amazônia, onde passa duas semanas. Depois se exila em uma temporada solitária em Gonçalves, no sul de Minas. Lá vive uma experiênci­a sofrida e transforma­dora ao tomar ayahuasca.

“As respostas estão dentro. Todas. Os universos estão dentro. As dimensões estão dentro. A viagem é interna”, descobre, nesse mergulho interior.

Quase tudo no livro é verdade, às vezes disfarçada pela mudança de nomes e uma ou outra interpreta­ção livre da realidade. Milly escreve de forma envolvente —uma saída interessan­te da edição é a história ir e voltar no tempo. Enquanto em um capítulo ainda se questiona se foi traída, no próximo está suando em uma “sauna” coletiva na selva. A leitura avança rapidament­e.

Às vezes o leitor para para pensar por que a tristeza provocada por uma situação tão pessoal deveria ser interessan­te para toda uma categoria de leitores. Posso falar por mim: conheço a autora e as pessoas citadas no livro. Mas o fato é que Milly tem seu público, e questões íntimas são grande partedeseu­assunto.Talvezpor ela falar do amor lésbico como ele deve ser tratado: como o amor, essa questão universal. AUTORA Milly Lacombe EDITORA Planeta QUANTO R$ 36,90 (320 págs.) AVALIAÇÃO bom

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