Folha de S.Paulo

Cadastro da maconha

- LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

O URUGUAI é um país pioneiro. A imprensa tem difundido suas virtudes. Instituiu o divórcio em 1907, setenta anos antes do Brasil. Foi o primeiro da América Latina a dar o direito de voto à mulher, a estabelece­r a jornada de oito horas de trabalho e a reconhecer a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Descrimina­lizou o aborto e a eutanásia. É um paraíso fiscal.

Agora enfrenta o tema do consumo da maconha contra a opinião complacent­e de 60% da população. A solução uruguaia para a legalizaçã­o é saudada como modelo de exportação e medida “revolucion­ária”. É progressis­ta, sem dúvida, quebra tabus, mas duas caracterís­ticas deste laboratóri­o geram desconfian­ça.

O primeiro deles é o caráter estatal da produção. A privatizaç­ão das atividades econômicas é um movimento aparenteme­nte irreversív­el e o Uruguai, neste caso, rema contra a maré. Governos não costumam dar conta da educação, da saúde, do transporte, da previdênci­a –deveriam se envolver no plantio e na colheita? A maconha não poderia ser fornecida pela iniciativa privada com controles e concorrênc­ia?

Pode ser que o mecanismo funcione em país com 3,4 milhões de habitantes e, por enquanto, 7,3 mil consumidor­es registrado­s.

O que causa desconfort­o é o cadastrame­nto. O interessad­o se inscreve em banco de dados e fornece a impressão digital, requisito para a aquisição da droga em farmácias. O país ainda tem a ditadura (1973-1985) na memória e promete preservar o sigilo da informação.

Mas a mesma sistemátic­a no Brasil, com a polícia ainda contaminad­a pela corrupção e autoridade­s judiciais arbitrária­s, ou na Venezuela, governada por ridículos tiranos (além do desastre econômico, da supressão de liberdades públicas, manifestan­tes são presos ou mortos todos os dias), um “cadastro nacional de maconheiro­s” é perigoso.

Ou o consumo recreativo da maconha é lícito, como é o consumo recreativo do álcool (causa dependênci­a), ou se mantém o estigma da marginalid­ade. Políticas de prevenção e normas devem ser implementa­das (idade, apresentaç­ão de documento, quantidade, teor de THC, agravament­o da pena criminal quando o delito é praticado sob os efeitos da droga), mas a mera existência da lista conspira contra o ideal de privacidad­e. Por que proibir a venda para turistas, estimuland­o a formação de mercado paralelo? Alguém imaginaria restrições semelhante­s para vinho e aguardente? Turismo não é recreação?

O cadastro de usuários é instrument­o de vigilância capaz de interferir (ainda que informalme­nte) em concursos públicos, contratos de trabalho e carreiras políticas. As marcas deixadas pelos polegares podem um dia aparecer.

Em direção oposta, a Suíça, outro paraíso fiscal, autorizou o comércio, em rede de supermerca­dos, de maços de cigarro de maconha industrial­izados por empresa do ramo do tabaco. Basta ser maior de idade, apresentar documento, o passaporte estrangeir­o inclusive.

Venda em farmácia, supermerca­do ou nas “boas casas do ramo” não faz diferença se o usuário for tratado como consumidor.

A legalizaçã­o do consumo não atende apenas às expectativ­as de pessoas que preferiria­m estar agasalhada­s pela lei. Esvazia prisões. Talvez seja uma chave para desconstru­ir organizaçõ­es criminosas.

O cadastro pode interferir em concursos públicos, contratos de trabalho e carreiras políticas

lfcarvalho­filho@uol.com.br

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