Folha de S.Paulo

Diário do cárcere capta estado de espírito de sociedade sob autoritari­smo sufocante

- MATHIAS ALENCASTRO

FOLHA

Ao longo do seu livro “Sou Eu Mais Livre, Então”, Luaty Beirão tenta fugir das etiquetas. Ele demonstra estar plenamente consciente do seu lugar na história de Angola.

A trajetória de Luaty até a detenção de cerca de um ano, durante os quais fez uma greve de fome de 36 dias, o número de anos que o seu antagonist­a, o presidente José Eduardo dos Santos, persistiu em ficar no poder, lembra o roteiro do filme “Diários de Motociclet­a”, de Walter Salles.

Luaty, 35 anos, afiou os dentes nos movimentos estudantis franceses na universida­de de Toulouse. Seguiu caminho para a sua terra natal atravessan­do por terra um bom pedaço da Europa e África. Morando em Angola, ele se torna um dos principais expoentes da cena cultural da capital, uma mistura de artes, música e, timidament­e, alguma política.

Desde o término da brutal guerra civil, em 2002, Angola tem sido controlada por mão de ferro pelo regime autoritári­o do presidente e seu partido-Estado Movimento Para a Libertação Popular de Angola.

A colossal renda petrolífer­a do primeiro exportador africano assegura a cooptação das elites, a adesão da minúscula classe média, e a repressão ao resto da população.

O diário de cárcere de Luaty, que compõe grande parte do livro, captura o estado de espírito da sociedade civil esmerada por esse clima sufocante. Uma composição de rimas, versos, desenhos, ritmada por uma escrita nervosa e espontânea permeada por expressões de rua angolanas.

O grande mérito do livro está implícito no título. Ele sabe que a detenção marcou uma virada. Isso liberta-o do fardo de justificar a sua ação por meio de um manifesto político.

Ao invés disso, ele espalha nas suas páginas as milhares de ideias que atravessam simultanea­mente a sua cabeça, sobre temas tão variados como Uber, Primavera Árabe, paternidad­e e sobrevivên­cia.

O resultado é um texto de alta intensidad­e, que reflete a política externa brasileira. Afinal, o governo brasileiro e a Odebrecht, assessorad­os por consultore­s e marqueteir­os, participar­am decisivame­nte no disfarce do regime autoritári­o angolano em uma democracia em construção.

O colapso do preço do petróleo fez ruir essa fachada, e colocou diante dos olhos de todos aquilo que o autor e muitos outros arriscaram a vida denunciand­o.

Numa entrevista, Luaty sugeriu que o presidente José Eduardo dos Santos, responsáve­l pela sua detenção, é o pai do livro. Nesse caso, o Brasil é o seu padrinho. AUTOR Luaty Beirão EDITORA Tinta da China QUANTO R$ 59 (280 págs.) AVALIAÇÃO muito bom

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