Folha de S.Paulo

Utilidades demais

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RIO DE JANEIRO - Flanando outro dia pela avenida Rio Branco, vi-me sem querer na galeria formada pelos camelôs a quem o prefeito Marcelo Crivella entregou a cidade. E, como estava ali, caí na tentação de procurar um objeto: uma lanterninh­a, daquelas micro, de plástico, a pilha. O camelô me mostrou uma pequena peça, que acoplou a seu celular, e produziu um jatinho de luz. Agradeci e respondi que não me servia —“Não uso celular”, expliquei.

O camelô se escandaliz­ou: “Não usa celular???”, perguntou, com vários pontos de interrogaç­ão e num volume que o fez ser ouvido por todo mundo em volta. A frase se espalhou pelos demais camelôs e, em segundos, à medida que eu passava pelo corredor humano, podia sentir os dedos apontados para mim e a frase: “Não usa celular!!!”. Para eles, eu devia equivaler a alguém que ainda não tinha aderido ao banho quente ou à luz elétrica. Acho até que um camelô me fotografou, talvez para mostrar a algum amigo incrédulo —como pode haver, em 2017, quem não use celular?

Consciente de ser um anacronism­o ambulante, confesso-me esta pessoa e me atrevo a dizer que o celular nunca me fez falta —e continua não fazendo. Para me comunicar, vivo hoje mais ou menos como em 1990, quando o treco ainda não existia e nem se pensava no assunto.

Ninguém deixa de falar comigo por falta de telefone. Se estou em casa, atendo àquele aparelho que hoje chamam, com desprezo, de “fixo”. Se tiver de sair, faço as ligações de que preciso e vou alegrement­e para a rua. Se alguém me telefonar enquanto eu estiver fora, paciência —se for importante, ligará de novo.

Por que não uso celular? Porque, com suas 1.001 utilidades, tipo Bombril, ele é capaz de me escravizar. O único jeito é manter-me à distância —até o dia em que, com ou sem ele, provavelme­nte ficarei inviável de vez. LÍVIA MARRA

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