Folha de S.Paulo

LIÇÕES DE GUARDANAPO

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“Se eu lhe contar a estória de minha vida e você notar o quanto ela é cheia de luta, de beleza, de poesia e de amor, certamente, irá querer me imitar.” Assim diz uma das pequenas reflexões reunidas no último livro de José Utsch de Lima, 80.

O mineiro contador de “causos” mora em Lagoa Santa (MG), a 40 km de Belo Horizonte, era praticamen­te analfabeto e resolveu transforma­r as adversidad­es da vida em encanto.

O mais recente revés foi a perda do filho mais velho. Em outubro do ano passado, Cleber Costa Almeida Lima morreu de câncer aos 54 anos. “Eu nunca pensava em ter um sofrimento desse”, diz Lima.

Para distrair-se do ocorrido, ele resolveu transforma­r o muro da sua casa em muro da gentileza. Ficou amigo de um jovem grafiteiro e encomendou a pintura. Todos os dias, dispõe ali alguns itens para doação: CDs, livros, brinquedos, mudas de planta, roupas e doces.

Colocou também uma placa: “Devemos ser solidários só com nossa família e amigos ou com todos?”. “É um puxão de orelha, não é?”, diz.

Dentro de casa, Lima também coleciona plaquinhas com dizeres. Em geral, acompanhad­as de fotos de animais e plantas que ele mesmo tira com seu celular simples.

O escritor estudou até o que seria hoje o terceiro ano do ensino fundamenta­l. A intimidade com a escrita veio mais tarde, aprendendo por si e com a ajuda da mulher e professora Diva de Almeida Costa Lima, 78. “Queria tirar de mim o que estava socado lá dentro”, afirma.

Antes de virarem livros ou quadros, seus pensamento­s, anedotas e crônicas são escritos em guardanapo­s, geralmente no bar frequentad­o aos finais de semana.

São então passados a limpo por Diva e depois levados para digitação. Desde 2005, são seis obras e uma sétima que já foi escrita, mas ainda não publicada.

Em “Valeu a Pena a Caminhada”, o escritor devaneia sobre os caminhos da estrada da vida e a velhice.

Escreve que a felicidade e o amor estão presentes em “coisas lindas e belas” como as flores, os pássaros, as mulheres, os sonhos, a família, os amigos e Deus. Lima tem que carregava na cabeça. “O sangue ia escorrendo na minha cara, mas estava feliz e satisfeito. Daquilo eu aprendi muita coisa.”

Na juventude, trabalhou no Rio como garçom e camelô. Foi também cobrador e motorista de ônibus que ligavam o interior à capital mineira. Eram tempos de boemia, farra, bebida e mulheres. “Putaria”, define Lima.

“Mas estava me faltando alguma coisa, e era essa mulher”, diz Lima sobre Diva.

Ao contrário do marido falante e irreverent­e, a mulher se constrange a cada vez que Lima deixa escapar palavras como “sexo”.

Quando adolescent­e, Lima chegou a tatuar, na perna, as iniciais de Diva e, no braço, a palavra amor. Um ex-presidiári­o foi quem fez a arte numa época em que tatuagem era sinônimo de cadeia.

Depois de casado, trabalhou nos Correios como carteiro e telegrafis­ta. Foi transferid­o para Lagoa Santa há mais de cinco décadas. Por um período, vendeu frango na cidade e precisou da ajuda da mulher para aprender a multiplica­r.

Quando sofreu um infarto, aos 53, aposentou-se do serviço público, mas seguiu trabalhand­o como caminhonei­ro porque “sua família ainda não tinha casa”.

Já na virada do século, Lima foi secretário dos transporte­s e do meio ambiente de Lagoa Santa.

“Não sei se sou doido ou bobo. Só vejo a vida de forma diferente”, diz, enquanto mostra o jardim. Da varanda, o seu lugar preferido, recebe os cumpriment­os de quem passa na rua. “Nessa hora, eu sou o homem mais rico do mundo”, diz.

Conhecido na cidade, Lima já apareceu na TV e em jornais, além de ganhar mais de dez homenagens do município. OCASO Se na primeira impressão o otimismo de Lima é inabalável, logo ele comenta —e escreve— que o cenário atual está permeado de crimes, ódio, drogas e “roubalheir­a na política”. Ele já foi convidado a ser vereador e até vice-prefeito, “mas a podridão é tanta que não anima”.

As pinceladas de tristeza recaem também sobre sua avançada idade. Escreve que os velhos sofrem com a solidão e a indiferenç­a, mas busca aceitar que o fim da vida chega para todos.

Lima é um dos diretores e ajuda a bancar um asilo de mais de trinta idosos em Lagoa Santa.

“As dores de um corpo velho ninguém tira”, afirma. Diante de uma ponderação sobre sua vitalidade, Lima conclui: “sim, eu ainda ando, dirijo, escrevo e amo; sou um campeão”.

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