Folha de S.Paulo

Doença portuguesa chegou ao Brasil há 500 anos e ainda é desconheci­da

Transtorno genético PAF costuma aparecer em diversas gerações dentro da mesma família

- GIULIANA MIRANDA

Ainda não há cura definitiva e tratamento com droga existente deve ter início assim que sintomas aparecem

Há pouco mais de 500 anos, Portugal vivia o esplendor das grandes navegações. Mas, além do idioma e das fortes influência­s culturais, o expansioni­smo lusitano também acabou trazendo para o Brasil uma doença genética rara, progressiv­a e incurável.

A polineurop­atia amiloidóti­ca familiar, mais conhecida pela sigla PAF, chegou ao Brasil junto com os imigrantes — tanto os pioneiros como o das ondas migratória­s mais recentes— e, hoje, já há mais brasileiro­s afetados do que portuguese­s. Famoso pelos bons vinhos e pela culinária farta, o norte de Portugal é também o principal foco desta doença.

Pesquisado­res acreditam que o “berço” da moléstia esteja em algum lugar próximo à pequena cidade de Póvoa de Varzim (a 350 km de Lisboa). Enquanto no resto do mundo trata-se de um problema raro, por lá a PAF não é incomum: chega a afetar 1 em cada 500 habitantes.

Em 1939, quando o médico português Corino de Andrade descreveu a doença pela primeira vez, o paciente em questão era de Póvoa de Varzim.

Hoje se sabe que a PAF tem causa genética. Nos pacientes com a doença, a proteína TTR (transtirre­tina) tem uma mutação que a deixa instável e a faz com que ela se deposite em vários órgãos, prejudican­do seu funcioname­nto.

Os cientistas já identifica­ram mais de 130 mutações que podem causar a condição. A mais prevalente no mundo é justamente a mutação dos portuguese­s (30M), seguida por uma encontrada em populações africanas (122V).

Diferente de muitas doenças mendeliana­s (causadas por apenas um gene), a PAF é autossômic­a dominante. Isso significa que basta apenas uma cópia defeituosa do gene com a mutação para que ela se manifeste. Por isso, é bastante comum encontrar famílias inteiras em que várias gerações são afetadas.

A doença é amplamente conhecida entre os médicos de Portugal. O país conta com dois modernos centros de tratamento —no Porto e em Lisboa— e uma rede de diagnóstic­o e de cuidados.

No Brasil, onde se estima que haja 25 milhões de lusodescen­dentes, o cenário é bastante diferente. A condição ainda é pouco conhecida até para a classe médica.

Enquanto em Portugal o tempo médio de diagnóstic­o é de dois anos, no Brasil é cerca de cinco. A demora pode significar mais comprometi­mento da saúde do paciente.

Os sintomas iniciais podem variar, mas, na versão portuguesa, eles costumam se manifestar primeiro nos membros periférico­s. Há perda de sensibilid­ade, formigamen­tos e perda de força.

Como esses sintomas são comuns em outras doenças, não é raro que pacientes com PAF recebam diagnóstic­os incorretos, como o de hanseníase. Depois, surgem sintomas como náuseas, olhos secos e perda acentuada de peso. DIFICULDAD­ES “O diagnóstic­o é difícil porque as pessoas, sejam médicos ou pacientes, simplesmen­te não conhecem a doença”, diz a médica Márcia Cruz, chefe do Centro de Estudos em Paramiloid­ose Antônio Rodrigues de Mello (Ceparm) do Hospital Universitá­rio da UFRJ.

Criado em 1983, o centro é o único no Brasil totalmente dedicado à PAF. O Rio de Janeiro, até onde os escassos dados da doença no Brasil permitem saber), é o Estado brasileiro mais afetado.

A doença precisa ser identifica­da por meio de um teste genético —de alto custo na rede particular e de difícil acesso no serviço público. A demora até o resultado, no entanto, pode significar muito para esses pacientes.

A doença costuma manifestar seus primeiros sintomas em torno dos 32 anos para os homens e de 37 anos para as mulheres. Sem tratamento, a degeneraçã­o evolui rapidament­e e o paciente pode morrer em dez anos.

Ainda não existe cura para a paramilois­ose, mas já há opções terapêutic­as. O único medicament­o já aprovado para combater a PAF é o tafamidis, que age estabiliza­ndo a proteína transtirre­tina. A droga não faz com que os sintomas adquiridos regridam, mas desacelera a progressão natural da doença.

O medicament­o só tem efeito comprovado nos estágios iniciais, quando o comprometi­mento motor e dos órgãos ainda é moderado. Em estágios avançados, a única opção é o transplant­e de fígado, onde a maior parte da transtirre­tina é produzida.

A médica Márcia Cruz explica que, uma vez feito o diagnóstic­o da mutação causadora da PAF, o paciente é monitorado e só deve tomar o remédio quando os sintomas têm início. “O Brasil já é considerad­o hoje uma região endêmica, como Portugal”, diz. Acredita-se que haja cerca de 5.000 casos no país.

GIULIANA MIRANDA

 ?? Ricardo Borges/Folhapress ?? A filha de portuguese­s Tereza Moura, 64, e seu filho Rafael Martinelli; ambos têm PAF
Ricardo Borges/Folhapress A filha de portuguese­s Tereza Moura, 64, e seu filho Rafael Martinelli; ambos têm PAF

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