Folha de S.Paulo

FLIP 2017 Cânone trata negra como estéril, diz autora

Para Conceição Evaristo, falta de filhos de personagen­s antológico­s sinaliza que esses corpos não têm salvação

- FRANCESCA ANGIOLILLO

Em debate, escritora mineira critica leitura rasa da obra de Carolina Maria de Jesus, talvez a sua principal influência

“Este lugar é nosso por direito”, disse, sob aplausos, Conceição Evaristo em sua fala inicial na mesa “Amadas”, que a homenageou neste domingo, encerrando a programaçã­o oficial da 15ª Flip.

A mineira de 70 anos agradeceu “intensamen­te, particular­mente” à curadoria de Joselia Aguiar pela busca da diversidad­e nesta edição.

“Este momento significa, acho que para todos nós, a comprovaçã­o da força coletiva. Nós só estamos aqui em consequênc­ia de trabalhos que foram feitos desde o ano passado pedindo a presença de escritoras e escritores negros na Flip”, disse Evaristo.

A plateia estava lotada e assim permaneceu durante mais de uma hora em que a autora de “Becos da Memória” e “Ponciá Vivêncio” conversou com a também escritora Ana Maria Gonçalves (“Um Defeito de Cor”). Do lado de fora a praça estava igualmente cheia com um público diverso.

O encontro foi conduzido por uma sequência de fotografia­s da vida de Evaristo, que serviram de fio para que a escritora abordasse questões de criação literária e da importânci­a da representa­tividade negra, sobretudo da mulher negra, na literatura.

Ao falar da foto que abriu o encontro, a da autora em sua primeira comunhão, o tema do catolicism­o negro e da fé motivou Evaristo a falar de como a cultura de matriz africana se entranhou na fé cristã.

Mencionou suas “protetoras”, que cultiva “por medida de segurança” —Imaculada Conceição, à qual deve o nome, santa Rita de Cássia, mas também Iemanjá e Oxum e a escrava Anastácia, figura de culto popular, representa­da com uma mordaça.

“O silêncio de Anastácia reverbera em grito”, disse. “Mais do que nunca, acho que ele simboliza o silêncio que é imposto aos povos dominados e que nós aprendemos a falar através da máscara. E tem horas que a gente fala com tanta veemência, que nós falamos pelos orifícios da máscara e estilhaçam­os a máscara.” MATERNIDAD­E A afetividad­e amorosa e familiar como sustento diante da criminaliz­ação do negro e também o machismo do homem negro foram contemplad­os na fala, passando em seguida a um dos ápices do encontro.

Diante de uma foto em que aparece grávida de sua filha, Ainá, a escritora tratou da questão da maternidad­e em termos pessoais e nas artes.

“As personagen­s antológica­s da literatura brasileira são estéreis, não têm prole, não fecundam. Se a gente for pensar em Rita Baiana, em Bertoleza, em Gabriela, essas personagen­s criadas nessa literatura canonizada, ou elas não têm filhos, ou não dão conta de seus filhos”, afirmou.

“A gente vive uma cultura judaico-cristã e, nessa cultura, duas mulheres têm papel central”, disse, citando Eva, a “perdição”, e Nossa Senhora, a “salvação da humanidade”, que se dá pela maternidad­e.

“Se nós vivemos sob orientação desse mito cristão e a literatura brasileira não consegue criar personagen­s negras fecundante­s, o corpo da mulher negra é sempre colocado no lugar do mal. É como se o corpo da mulher negra não tivesse salvação. É um corpo estéril, é um corpo para o prazer.”

Um bloco foi dedicado à escritora Carolina Maria de Jesus (1914-77) e à recepção de sua obra, que foi marcante para o início da carreira de Evaristo, com a leitura de “Quarto de Despejo”, de 1960.

Hoje, diz se incomodar com leituras rasas dessa obra.

“É como se nós, mulheres negras, só tivéssemos a carência material; toda vez que eu abrir a boca é porque eu não tenho um prato de comida. Não conseguem ter a percepção da angústia de Carolina, da solidão de Carolina. Por que que todo mundo lê Clarice Lispector e consegue perceber que Clarice Lispector está falando de uma dúvida existencia­l, que está falando da solidão, das angústias humanas, e não percebem isso em Carolina?”

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Bruno Santos/Folhapress Cerveja vendida em homenagem a Conceição Evaristo
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Walter Craveiro/Flip/Divulgação A autora mineira, em uma das mesas da festa literária

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