FLIP 2017 Cânone trata negra como estéril, diz autora
Para Conceição Evaristo, falta de filhos de personagens antológicos sinaliza que esses corpos não têm salvação
Em debate, escritora mineira critica leitura rasa da obra de Carolina Maria de Jesus, talvez a sua principal influência
“Este lugar é nosso por direito”, disse, sob aplausos, Conceição Evaristo em sua fala inicial na mesa “Amadas”, que a homenageou neste domingo, encerrando a programação oficial da 15ª Flip.
A mineira de 70 anos agradeceu “intensamente, particularmente” à curadoria de Joselia Aguiar pela busca da diversidade nesta edição.
“Este momento significa, acho que para todos nós, a comprovação da força coletiva. Nós só estamos aqui em consequência de trabalhos que foram feitos desde o ano passado pedindo a presença de escritoras e escritores negros na Flip”, disse Evaristo.
A plateia estava lotada e assim permaneceu durante mais de uma hora em que a autora de “Becos da Memória” e “Ponciá Vivêncio” conversou com a também escritora Ana Maria Gonçalves (“Um Defeito de Cor”). Do lado de fora a praça estava igualmente cheia com um público diverso.
O encontro foi conduzido por uma sequência de fotografias da vida de Evaristo, que serviram de fio para que a escritora abordasse questões de criação literária e da importância da representatividade negra, sobretudo da mulher negra, na literatura.
Ao falar da foto que abriu o encontro, a da autora em sua primeira comunhão, o tema do catolicismo negro e da fé motivou Evaristo a falar de como a cultura de matriz africana se entranhou na fé cristã.
Mencionou suas “protetoras”, que cultiva “por medida de segurança” —Imaculada Conceição, à qual deve o nome, santa Rita de Cássia, mas também Iemanjá e Oxum e a escrava Anastácia, figura de culto popular, representada com uma mordaça.
“O silêncio de Anastácia reverbera em grito”, disse. “Mais do que nunca, acho que ele simboliza o silêncio que é imposto aos povos dominados e que nós aprendemos a falar através da máscara. E tem horas que a gente fala com tanta veemência, que nós falamos pelos orifícios da máscara e estilhaçamos a máscara.” MATERNIDADE A afetividade amorosa e familiar como sustento diante da criminalização do negro e também o machismo do homem negro foram contemplados na fala, passando em seguida a um dos ápices do encontro.
Diante de uma foto em que aparece grávida de sua filha, Ainá, a escritora tratou da questão da maternidade em termos pessoais e nas artes.
“As personagens antológicas da literatura brasileira são estéreis, não têm prole, não fecundam. Se a gente for pensar em Rita Baiana, em Bertoleza, em Gabriela, essas personagens criadas nessa literatura canonizada, ou elas não têm filhos, ou não dão conta de seus filhos”, afirmou.
“A gente vive uma cultura judaico-cristã e, nessa cultura, duas mulheres têm papel central”, disse, citando Eva, a “perdição”, e Nossa Senhora, a “salvação da humanidade”, que se dá pela maternidade.
“Se nós vivemos sob orientação desse mito cristão e a literatura brasileira não consegue criar personagens negras fecundantes, o corpo da mulher negra é sempre colocado no lugar do mal. É como se o corpo da mulher negra não tivesse salvação. É um corpo estéril, é um corpo para o prazer.”
Um bloco foi dedicado à escritora Carolina Maria de Jesus (1914-77) e à recepção de sua obra, que foi marcante para o início da carreira de Evaristo, com a leitura de “Quarto de Despejo”, de 1960.
Hoje, diz se incomodar com leituras rasas dessa obra.
“É como se nós, mulheres negras, só tivéssemos a carência material; toda vez que eu abrir a boca é porque eu não tenho um prato de comida. Não conseguem ter a percepção da angústia de Carolina, da solidão de Carolina. Por que que todo mundo lê Clarice Lispector e consegue perceber que Clarice Lispector está falando de uma dúvida existencial, que está falando da solidão, das angústias humanas, e não percebem isso em Carolina?”