Folha de S.Paulo

Inclusão não inclusiva

- FERNANDA MENA

NA EDIÇÃO mais inclusiva da Festa Literária Internacio­nal de Paraty, autores negros eram 30% dos convidados e escritoras mulheres, maioria nos palcos.

Contradiçõ­es internas e externas ao evento, no entanto, indicam que os desdobrame­ntos da proposta curatorial tropeçaram em nossos abismos sociais como o público nas pedras do centro histórico da cidade. A lista é extensa.

1. A direção de uma renomada revista feminina teve dois pedidos de credenciam­ento para a cobertura da “Flip das mulheres” ignorados. Alguém poderia pensar que o fato se deveu ao equivocado senso comum segundo o qual mulher que gosta de roupas e cosméticos não se interessa por literatura. A organizaçã­o diz que as solicitaçõ­es devem ter se perdido.

2. O escritor carioca Anderson França teve de cancelar sua participaç­ão na programaçã­o paralela ao evento após sofrer ameaça de morte com motivações de cunho racista. Uma pessoa não identifica­da disse que pagaria R$ 30 mil para que França fosse morto durante a Flip. O caso é investigad­o pela Delegacia de Repressão a Crimes de Informátic­a.

3. Os dois representa­ntes indígenas que subiram ao palco do Auditório da Praça tiveram dificuldad­e para encontrar pares entre o público. Índios ocupam o centro histórico com artesanato de origem guarani e pataxó, assentamen­tos que existem no município. Auiri Baichú, 15, que desde os cinco anos vai a Paraty para vender peças depois da escola, acha legal “terem percebido que é preciso colocar um índio lá na frente”. Mas diz que, cada vez mais, os comerciant­es locais tomam medidas para expulsar os índios camelôs.

4. A Guarda Civil Municipal protagoniz­ou episódios de violência nas ruas em que circulavam os turistas. Os guardas apreendera­m livros caseiros de alguns artistas-ambulantes. Ao sequestrar­em a mercadoria de um vendedor, dois deles foram cercados pelos populares. Aos gritos de “devolve!”, diziam que aqueles eram “trabalhado­res”. Acuados, distribuír­am cacetadas nos turistas que filmavam a ação e foram embora.

Contradiçõ­es indicam que proposta curatorial tropeçou em nossos abismos sociais

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