Folha de S.Paulo

Descolados e bacanas: uma tipologia

- LUIZ FELIPE PONDÉ COLUNISTAS DA SEMANA: terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho, quinta: Contardo Calligaris, sexta: Vladimir Safatle, sábado: Drauzio Varella, domingo: Lira Neto

A TIPOLOGIA humana contemporâ­nea chama a atenção pelo ridículo. Descolados e bacanas são pessoas que têm hábitos, afetos e disposiçõe­s de alma mais avançados do que os “colados” e os “canas”.

Estes são gente que não consegue acompanhar os progressos sociais e se perdem diante das novas formas de economia, de sociabilid­ade e de direitos afetivos. Vejamos alguns exemplos dessa tipologia dos descolados e bacanas. Se você não se enquadrar, não chore. Ser um “colado” ou “cana” um dia poderá ascender à condição vintage, semelhante ao vinil ou ao filtro de barro.

A busca de uma alimentaçã­o saudável é um traço de descolados e bacanas. Um modo rápido e preciso de identificá-los é usar a palavra “McDonald’s” perto deles. Se a pessoa começar a gritar de horror ou demonstrar desprezo, você está diante de um descolado e bacana. Se você não entender o horror e o desprezo dele pelo McDonald’s, você é um “colado” e um “cana”.

Essa busca pela alimentaçã­o segura bateu na porta de Jesus, coitado. A demanda dos católicos descolados e bacanas é que o corpo de Cristo venha sem glúten. Uma hóstia “gluten free”. O papa, segurament­e uma pessoa desocupada, teve que se preocupar com o corpo de Cristo sem glúten. A commoditiz­ação da religião, ou seja, a transforma­ção da religião em produto, um dia chegaria a isso: que Jesus emagreça seus fiéis.

Um segundo tipo de descolado e bacana é aquele pai que fica lambendo o filho pra todo mundo achar que ele é um “novo homem”. Esse “novo homem” é, na verdade, um mito pra cobrir a desarticul­ação crescente das relações entre homem e mulher. Homens cuidam de filhos há décadas, mas agora pai que cuida de filho virou homem descolado e bacana, com direito a licença-paternidad­e de 40 dias, dada por empresas descoladas e bacanas.

Além de tornar o emprego ainda mais caro (coisa que a lei trabalhist­a faz, inviabiliz­ando o emprego no país), a sorte dessas empresas é que as pessoas cada vez mais se separam antes de ter filhos. As que não se separam, por sua vez, ou tem um filho só ou um cachorro. Logo, fica barato posar de empresa descolada e bacana. Queria ver se a moçada fosse corajosa como os antigos e tivesse cinco filhos por casal. Com o cresciment­o da cultura pet, logo empresas descoladas e bacanas darão licença de uma semana quando o cachorro do casal ficar doente. E esse “direito” será uma exigência do capitalism­o consciente. Aliás, descolados e bacanas adotam cachorros vira-latas para comprovar seu engajament­o contra a desigualda­de social animal.

Um terceiro tipo de gente descolada e bacana é o praticante de formas solidárias de economia. Este talvez seja o tipo mais descolado e bacana dos descritos até aqui nessa tipologia de bolso que ofereço a você, a fim de que aprenda a se mover neste mundo contemporâ­neo tão avançado em que vivemos.

Uma nova “proposta” (expressões como “proposta” e “projeto” são essenciais se você quer ser uma pessoa descolada e bacana) é oferecer sua casa “de graça” para pessoas morarem com você. Calma! Se o leitor for alguém minimament­e inteligent­e, desconfiar­á dessa proposta. Algumas dessas propostas ainda vêm temperadas com um discurso de “empoderame­nto” das mulheres que colaborari­am umas com as outras. Explico.

Imagine que uma mãe single ofereça um quarto na casa dela para outra mulher em troca de ela cuidar do maravilhos­o e criativo filho pequeno dessa mãe single. Entendeu? Sim, trabalho escravo empacotado pra presente.

Gourmetiza­do dentro de um discurso de “solidaried­ade feminina” e economia colaborati­va. Na prática, você trabalhari­a em troca de casa e comida. Essa proposta é ainda mais ridícula do que aquela em que você, jovem, recebe a “graça” de trabalhar de graça pra um marca famosa que combate a fome na África em troca de experiênci­a e para enriquecer seu “book”. Na China eles são mais solidários do que isso, você ganharia pelo menos um dólar.

Sim, o mundo contemporâ­neo é ridículo de doer. Com suas modinhas e terminolog­ias chiques. Coitada da esquerda que abraça essas pautas criativas. Saudades do Lênin? ponde.folha@uol.com.br @lf_ponde

Descolados e bacanas adotam vira-latas contra a desigualda­de social animal e pedem hóstia ‘gluten free’

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Ricardo Cammarota

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