Folha de S.Paulo

O Eu e o Acima-de-mim

- FRANCISCO DAUDT COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

O MARQUÊS de Sade se masturbava em seu quarto, olhos postos no crucifixo acima dele, na parede, a dizer-lhe desafiador­amente: “Me mata, me mata agora, se você existe!” Chegado o orgasmo, gritava em meio a gargalhada­s: “Aha! Você não existe!”

Essa cena poderia ser uma síntese de sua produção literária, talvez de sua vida: ele sempre foi um inimigo fiel e devoto do seu Acima-demim. O marquês se dedicou eternament­e a renegá-lo, a imaginar qual insulto poderia ser pior para escarnecê-lo, qual ultraje conseguiri­a seduzir mais seus leitores para o culto de amor e ódio a essa Nêmesis que consumiu sua existência.

O Acima-de-mim é uma tradução possível para o alemão “das Über-ich”, termo alemão criado por Freud para uma das três instâncias da mente, que conhecemos como Superego (as outras são “das Ich” e “das Es” —o Eu e o Algo-em-mim, conhecidas como o Ego e o Id).

Volto a tratar do assunto porque sua presença em nossas vidas é muito mais poderosa —e subestimad­a— do que se percebe, mesmo porque ele, o Acima-de-mim, é em parte inconscien­te.

A parte notada nós conhecemos desde a infância, quando nossos pais diziam: “Meu filho, ouça a voz da consciênci­a”. De fato, lá estava ela a nos dizer o que era certo, e como nós andávamos errados.

Ela funciona como uma constituiç­ão e um tribunal portáteis, paradigma da perfeição a nos criticar e a exigir que sigamos seu exemplo, que nos comportemo­s como se fôssemos ela.

E volta e meia nós fazemos isso, ficamos Acima-dos-outros. Basta ver a atividade mais comum no Facebook, o puxão de orelha —para dizer o mínimo— público, com os consequent­es rancores e retaliaçõe­s que essas espinafraç­ões causam.

Vivemos um momento histórico em que há uma competição acirrada —o tal “nós contra eles”— para ver quem é o mais crítico, mais dono da verdade, mais perfeito e mais Acima-dos-outros. Estamos constantem­ente afiando nosso juiz interno, emitindo sentenças de morte contra nossos inimigos, acirrando nossos ódios. Tal é o legado do populismo, de dividir o país para conquistar o poder em nome de bons propósitos, que se tornam desmascara­dos ao mostrar sua face gananciosa.

Mas o discurso é populista justamente porque atinge o povo com simplorism­o, e essa perda de complexida­de mora dentro de nós: ela é a fala habitual do Superego.

De sua posição Acima-de-mim, ele pode-me ser útil, mas também pode ter se tornado um julgador cruel, um sucessor de quem me criou mal, um déspota tão odiento quanto o era para o marquês de Sade, dizendo que só há branco e preto, que, se eu não sou imaculado, então eu não presto.

Ou seja, um magistrado idiota a quem só me resta odiar/temer/reverencia­r, tudo isso junto, numa confusão dos diabos que me emburrece pelo tumulto mental que causa. Como é mais fácil odiar do lado de fora, não há populismo sem inimigo público. Esse é seu truque mais comum. Esse é o estado a que chegamos.

Mas por que eu estou falando de política, se quero ser conceitual? Porque é de política que se trata: da política que se passa dentro de nossas cabeças. A briga principal é entre o Eu e o Acima-de-mim.

Vivemos um momento histórico em que há uma competição para ver quem é mais Acima-dos-outros

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil