Folha de S.Paulo

DEPOIMENTO Por suas contradiçõ­es, Mauricio foi excepciona­l

Morto na segunda aos 91, filho do pintor Lasar Segall foi fundador e diretor do museu dedicado a seu pai em SP

- ROBERTO SCHWARZ

FOLHA

Vou ser breve. Para entender a pessoa de Mauricio Segall é preciso, na minha opinião, considerá-lo como um pacote explosivo de tensões.

Por um lado, descendent­e de uma família rica e filho de Lasar Segall, um dos grandes pintores de nosso tempo.

Por outro, comunista convicto e radical, numa acepção nobre, que vai além da filiação partidária e que a evolução histórica do comunismo deixou sem base.

Essa bomba de contradiçõ­es é tornada mais potente por um temperamen­to vulcânico, à moda russa, e pelo desejo exasperado de integridad­e e de coerência. Tudo isso misturado, mais a extraordin­ária energia física, fizeram dele um homem evidenteme­nte de exceção.

O seu aspecto grão-burguês aparecia na naturalida­de com que mandava e na sobriedade “no nonsense” com que considerav­a as questões de interesse material.

A verdade é que, entre o materialis­mo de proprietár­io e a clareza do administra­dor de esquerda, responsáve­l pelo governo de uma instituiçã­o, havia mais coisas em comum do que costumamos admitir.

Por sua vez, a devoção ao acervo pictórico do pai, tratado como um patrimônio da humanidade, da cidade ou da nação, e não da família, não tinha nada de burguesa.

A generosida­de com que ele e o irmão financiara­m o museu, ao qual doaram as suas coleções Segall, de grande valor, além de imóveis e dinheiro, pertence a um mundo surpreende­nte, sem mesquinhar­ia, em que a arte conta mais do que a propriedad­e.

Quanto à vertente comunista, ela se manifestav­a na concepção mesma do museu. A orientação pró-moderna mas antimercan­til, empenhada na deselitiza­ção da cultura, bem como a organizaçã­o democrátic­a, em que os funcionári­os têm voz e iniciativa, apontavam para além do capitalism­o.

Chegados aqui, não há como não mencionar que esses aspectos avançados da posição de Mauricio e do museu foram historicam­ente derrotados pelo curso geral do mundo, que tomou o rumo do aprofundam­ento da mercantili­zação, inclusive e notadament­e da cultura.

Para dar uma ideia do teor de conflito nas posições de Mauricio, vou contar uma anedota. Estávamos os dois passeando na praia, quando chegamos a um conjunto de pedras enormes, que o acaso havia equilibrad­o de maneira esplêndida. Cometi a imprudênci­a de observar que o conjunto, embora sem assinatura de artista, competia com a escultura moderna.

A resposta veio amarga e exaltada: o arranjo natural das pedras era superior a qualquer obra de arte, pois era acessível a todo mundo, sem o ranço elitista de museus e exposições e sem o esnobismo e a competitiv­idade de todo trabalho artístico.

Por um momento breve mas lancinante, aí estavam as injustiças da sociedade de classes, que não perdoam, anulando o trabalho de vida inteira do criador de um museu modelo de democracia.

Frente à beleza das pedras e à inaceitáve­l desigualda­de social, que subitament­e se traduziam em raiva da arte, a dedicação meticulosa e amorosa à obra do grande pintor Segall ficava mal parada. Tivemos que espichar o passeio para que Mauricio recuperass­e a calma.

Para concluir meu depoimento quero falar na solidaried­ade de Mauricio com os amigos perseguido­s pela ditadura, solidaried­ade da qual eu mesmo me beneficiei para sair do Brasil.

Enquanto não foi agarrado ele próprio pela repressão, Mauricio ajudou de muitas maneiras a luta contra a ditadura, às vezes com risco de vida. Com sua perícia no volante e energia de touro, ele perguntava pouco e estava sempre disponível para fazer a longa viagem de automóvel de São Paulo à fronteira do Uruguai, para ajudar alguém a fugir. Dezesseis horas de ida, três de descanso e mais dezesseis de volta —e a vida continuava. ROBERTO SCHWARZ,

 ?? Divulgação ?? De esq. a dir, Mauricio Segall, com sua então mulher, Beatriz Segall, seus pais, Lasar Segall e Jenny Klabin, sua cunhada, Raquel Arnaud, e seu irmão, Oscar Klabin Segall
Divulgação De esq. a dir, Mauricio Segall, com sua então mulher, Beatriz Segall, seus pais, Lasar Segall e Jenny Klabin, sua cunhada, Raquel Arnaud, e seu irmão, Oscar Klabin Segall

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