Folha de S.Paulo

Charlottes­ville não é aqui

- JOEL PINHEIRO DA FONSECA

OS PROTESTOS racistas que ocorreram em Charlottes­ville, no Estado da Virgínia, nos EUA, nos chocam não pelo tamanho, mas pela repugnânci­a. Segundo as estimativa­s da mídia, os manifestan­tes não passaram das centenas, mas seu discurso rodou o mundo. É a face mais detestável da chamada “alt-right”, ou direita alternativ­a; não que ela careça de aspectos detestávei­s...

O grupo é uma franja minoritári­a nos EUA. Não representa o grosso da direita americana. Pelo contrário, tem visões opostas: em vez de um governo limitado pela Constituiç­ão e baseado em valores universais e direitos individuai­s, defende uma autocracia étnico-racial que proteja a coletivida­de branca contra seus supostos inimigos.

Na verdade, conservado­res tradiciona­is são um dos alvos favoritos da retórica virulenta dos “alt-righters”. Um punhado que no total não deve passar de algumas dezenas de milhares faz um barulho descomunal na internet e, por isso, é tratado como uma força política maior do que é. Além disso, o racismo ideológico nos EUA existe de longa data e, sob Trump, está mais ousado.

Em meio a tanta coisa ruim no Brasil, ao menos isso podemos dizer: esse protesto é impensável por aqui. O racismo no Brasil é real, mas não se manifesta como ódio racial. Não temos, nem historicam­ente, nem no presente, grupos de supremacis­tas brancos ou racistas com qualquer relevância. Nossa mistura das raças produziu uma realidade diferente da americana.

Quando mesmo grupos neonazista­s brasileiro­s contam com mestiços em suas fileiras, fica clara sua inviabilid­ade. A biologia impõe limites à ideologia.

Mas há uma outra caracterís­tica dos EUA que também causa surpresa: o protesto dos racistas não era ilegal. Mesmo com toda a polêmica gerada, a chance de a garantia legal à liberdade de expressão ser sequer tocada é zero. A lei está acima das paixões do momento.

O combate ao racismo, que no longo prazo tem sido vitorioso, não ocorre nos tribunais e nem com prisões. Permite-se que as opiniões — mesmo as que consideram­os mais detestávei­s— sejam expressas publicamen­te. Isso obriga que mesmo as opiniões corretas tenham que se munir de argumentos para se sustentar. E essa necessidad­e está dando um choque bem-vindo ao mainstream, que agora se dá conta de que a intimidaçã­o é incapaz de vencer uma proposta equivocada ou mesmo odiosa.

Por aqui, a liberdade de expressão é mais precária. O primeiro impulso de muita gente diante de opiniões que julgam ofensivas é proibir, multar ou prender. A cultura é mais de processos do que de argumentos. Ficamos complacent­es na certeza de que o Estado está aí para impedir ideias más de se alastrarem. A opinião criminaliz­ada se transforma em mártir e enfraquece nossas melhores defesas.

No plano das ideias, somos um país desprepara­do. Nossa força reside justamente em não levar as ideias tão a sério. Não cederemos à insanidade da “alt-right” (que já tem porta-vozes por aqui) e nem da esquerda totalitári­a. O que nos une é mais forte do que o ódio de classes ou de raças. Mas isso não nos exime de buscar entender o que fortalece esse ódio e, quando tivermos de confrontá-lo, ter algo além da indignação moral perante a existência daquilo que nos afronta.

O racismo no Brasil é real, mas não se manifesta como ódio racial, da maneira como aconteceu nos EUA

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