Folha de S.Paulo

Como saber onde estão seus pés?

- SU Z ANA HERCU L ANO-HOUZEL

PARECE TRIVIAL: sabemos onde estão as partes do nosso corpo porque temos informação sensorial chegando delas o tempo todo, oras. E se não temos sensações vindo da pele, dos músculos e dos tendões, que informam quão estirado cada músculo está no momento, então é só olhar, e a visão confirma: seus pés de fato refletem luz aos seus olhos vindo de onde você os sentia internamen­te.

Exceto que não é bem assim, como uma recente anestesia raquidiana me mostrou. Este tipo de anestesia envolve o bloqueio farmacológ­ico da passagem de informação pelos nervos que entram e saem da medula espinhal, interrompe­ndo a conexão entre cérebro e corpo. Com o bloqueio, nada passa do corpo para o cérebro, a começar pelos nervos que detectam lesão dos tecidos —não há qualquer sensação de dor e a cirurgia é tranquila para o paciente; e nada desce do cérebro para o corpo —não há risco de movimentos e a cirurgia é segura para o médico.

O anestesist­a atendeu meu pedido de raquidiana sem sedação, sobretudo quando disse que sou neurocient­ista e queria aproveitar para fazer, digamos, experiment­os. Ele veio me ajudar durante a recuperaçã­o, mudando meus pés e pernas de lugar sob as cobertas sem eu ver.

Ao contrário do que poderia se pensar, meus pés não “desaparece­ram” com a anestesia: apesar de insensívei­s e indetectáv­eis para o cérebro, eles ainda estavam lá no mesmo lugar em que os havia sentido pela última vez. Ainda podia mover minimament­e meus dedos e “sentia” o movimento onde percebia meus pés estarem: esticados à minha frente.

Mas não era sensação alguma, e, sim, meu cérebro antecipand­o onde o movimento deveria ocorrer—porque quando o anestesist­a mudou minhas pernas de posição sob as cobertas, meus dedos continuara­m se movendo onde de fato não estavam. Meu cérebro guardou a “última configuraç­ão válida” das minhas pernas e somente atualizou-a quando eu vi meus dedos se movendo do outro lado da cama —ainda assim, só enquanto recebia informação conflitant­e dos olhos, pois minhas pernas voltaram à configuraç­ão “esticada” tão logo as cobertas as esconderam.

Ou seja: o corpo está onde o cérebro espera que ele esteja e, se os sentidos não corroboram essa configuraç­ão, somente então ela é atualizada. Fabuloso. Depois dos antibiótic­os, a anestesia é, para mim, a melhor invenção da medicina.

Cérebro guarda “última configuraç­ão” de posição do corpo, o que continua até sentidos a desmentire­m

SUZANA HERCULANO-HOUZEL suzanahh@gmail.com

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