Como saber onde estão seus pés?
PARECE TRIVIAL: sabemos onde estão as partes do nosso corpo porque temos informação sensorial chegando delas o tempo todo, oras. E se não temos sensações vindo da pele, dos músculos e dos tendões, que informam quão estirado cada músculo está no momento, então é só olhar, e a visão confirma: seus pés de fato refletem luz aos seus olhos vindo de onde você os sentia internamente.
Exceto que não é bem assim, como uma recente anestesia raquidiana me mostrou. Este tipo de anestesia envolve o bloqueio farmacológico da passagem de informação pelos nervos que entram e saem da medula espinhal, interrompendo a conexão entre cérebro e corpo. Com o bloqueio, nada passa do corpo para o cérebro, a começar pelos nervos que detectam lesão dos tecidos —não há qualquer sensação de dor e a cirurgia é tranquila para o paciente; e nada desce do cérebro para o corpo —não há risco de movimentos e a cirurgia é segura para o médico.
O anestesista atendeu meu pedido de raquidiana sem sedação, sobretudo quando disse que sou neurocientista e queria aproveitar para fazer, digamos, experimentos. Ele veio me ajudar durante a recuperação, mudando meus pés e pernas de lugar sob as cobertas sem eu ver.
Ao contrário do que poderia se pensar, meus pés não “desapareceram” com a anestesia: apesar de insensíveis e indetectáveis para o cérebro, eles ainda estavam lá no mesmo lugar em que os havia sentido pela última vez. Ainda podia mover minimamente meus dedos e “sentia” o movimento onde percebia meus pés estarem: esticados à minha frente.
Mas não era sensação alguma, e, sim, meu cérebro antecipando onde o movimento deveria ocorrer—porque quando o anestesista mudou minhas pernas de posição sob as cobertas, meus dedos continuaram se movendo onde de fato não estavam. Meu cérebro guardou a “última configuração válida” das minhas pernas e somente atualizou-a quando eu vi meus dedos se movendo do outro lado da cama —ainda assim, só enquanto recebia informação conflitante dos olhos, pois minhas pernas voltaram à configuração “esticada” tão logo as cobertas as esconderam.
Ou seja: o corpo está onde o cérebro espera que ele esteja e, se os sentidos não corroboram essa configuração, somente então ela é atualizada. Fabuloso. Depois dos antibióticos, a anestesia é, para mim, a melhor invenção da medicina.
Cérebro guarda “última configuração” de posição do corpo, o que continua até sentidos a desmentirem
SUZANA HERCULANO-HOUZEL suzanahh@gmail.com