Folha de S.Paulo

Sucesso entre as crianças, grupo escapou da censura da ditadura

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Charles Gavin ficou com vontade de voltar aos palcos. O ex-integrante dos Titãs, pesquisado­r musical e apresentad­or de TV passou três anos sem tocar bateria. Mas, pensou, tocar o quê? A resposta: Secos & Molhados.

O resultado sai em vinil e lançamento digital no final do mês. O projeto —e o álbum— ganhou o nome “Primavera nos Dentes”, que é título de uma música do primeiro disco do Secos & Molhados.

“O que é relevante para a minha geração e para a geração de muita gente? Quem é relevante ainda hoje? Antes mesmo de pensar nas pessoas para tocar comigo, eu queria escolher um repertório”, afirma Gavin à Folha.

Ele considera o Secos & Molhados “uma das principais vértebras da música brasileira”. E ressalta que esse repertório não é tocado há muito tempo, exceto por algumas canções em shows de Ney Matogrosso ou de João Ricardo, integrante­s do grupo que sacudiu o Brasil em 1973.

Restava saber quem toparia tocar isso. A primeira pessoa que Gavin procurou para o projeto foi Paulo Rafael, guitarrist­a da mítica banda psicodélic­a pernambuca­na Ave Sangria e há 40 anos fiel escudeiro de Alceu Valença. VOZ FEMININA Ficou a questão: quem vai cantar? Gavin pensou em usar vários vocalistas, mas fechou com a gaúcha radicada no Rio Duda Brack, que já lançou um álbum solo, “É”. “Ela canta num registro parecido com o do Ney. Quando falei com ela, a reação foi muito boa. Ela dis- se ‘Claro, esse repertório fala comigo’.” Paulo Rafael trouxe para integrar a banda o baixista Pedro Coelho, que toca no musical de Cássia Eller.

“Começamos a ensaiar como quarteto, e a ideia principal era tocar os arranjos originais”, conta Gavin. “Mas estava soando mal. [risos] Era legal ouvir aqueles arranjos no disco, como foi gravado naquela época. Na nossa mão, não estava funcionand­o. E acabou mudando.”

O baterista assume que a missão era perigosa, mexer com um material quase sagrado da música brasileira. “Por isso demorou um ano e meio. Foi artesanal. Veio mais uma pessoa, a Duda convidou o Felipe Ventura, que toca guitarra e violino na banda Baleia.”

As músicas originais têm instrument­os escassos, arranjos singelos. Os músicos puderam recriar tudo com instrument­os mais abundantes e longas introduçõe­s delirantes. Ficou moderno, agitado, de ótima qualidade.

“Fizemos muita coisa pela intuição. E pela experiment­ação”, conta Gavin. “Tentávamos, e se não dava certo era descartado. Em cada música, a gente pensava primeiro no que não iria mudar. Vamos manter a linha principal da voz e mais alguma coisa? Fomos bem pouco respeitoso­s. ‘Sangue Latino’, que já lançamos em single na internet, não parece mais a música que eu sempre curti.” NO ESTÚDIO Eles estavam se preparando para mostrar o trabalho em um show. Mas uma demo de três faixas chegou aos ouvidos de Rafael Ramos, da gravadora Deck. Veio o convite para gravar. E rápido. “A gente estava fazendo tudo no nosso ritmo, quando o convite da Deck foi meio para ontem, sabe? Tivemos 15 dias para fechar o repertório”, diz Duda.

Ela conta que o quinteto tentou recriar “Mulher Barriguda”, mas foi uma das faixas que não deram certo. Segundo Pedro, “nessa correria, um dos arranjos saiu no último dia, ‘Rosa de Hiroshima’. Aos 47 do segundo tempo”.

O baixista diz que o grupo quer surpreende­r visualment­e no palco. “A gente sabe que não pode pegar esse repertório e ignorar a performanc­e. A questão cênica era muito importante no Secos & Molhados. Temos que seguir isso, mas não imitar o que faziam.”

Sem revelar detalhes do show de estreia, que deve ser no Rio, em setembro, Duda diz que será um espetáculo. “A gente vai trabalhar o figurino, o cenário, trazer para uma linguagem contemporâ­nea, como fizemos musicalmen­te.” Regravaçõe­s dos dois primeiros álbuns da banda

DE SÃO PAULO

Surgido em 1971, criado por João Ricardo, Secos & Molhados ganhou sua formação clássica em 1973, o trio formado por João, Ney Matogrosso e violonista Gerson Conrad.

Seu disco de estreia, com o nome da banda, vendeu 700 mil cópias em poucos meses. Seus integrante­s pintavam máscaras nos rostos, e Ney despontava como a grande estrela, com seu vocal agudo, quase feminino, e o corpo muito esguio que rebolava vestindo às vezes apenas grandes penas e tapa-sexo.

O sucesso do grupo atingia todos os públicos, inclusive as crianças. “Acho que tem uma música que é vital para que isso tenha acontecido”, declara Charles Gavin. “Infantil e bonita, ‘O Vira’ serviu para que o Secos e Molhados abraçasse também o público conservado­r, sem ser incomodado pela censura da ditadura.”

Em 1974, ao lançar o segundo LP, que também leva o nome da banda, o grupo se separou. Ney, brigado com João Ricardo, “dono” da banda, saiu em carreira solo. O fundador tentou voltas fracassada­s, com outros cantores. (TM)

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Fotos Reprodução Ney Matogrosso, João Ricardo (ajoelhado) e Gerson Conrad

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