Serviços como a Netflix continuam sem ter opções que fujam do convencional
FOLHA
O maior inimigo da Netflix, no momento, não poderia ser outro senão... a Netflix. Assim acontece com os quase monopólios. E, se a Amazon ataca por fora, se outros serviços se apresentam, nada, nem de longe, se compara ao predomínio mundial desse serviço de vídeo sob demanda.
Sim, agora a Disney tira da Netflix nos EUA todos os seus super-heróis e prepara-se para lançar o seu próprio serviço de streaming. Mas a Netflix contra-ataca e se associa à Millarworld, produtora escocesa de HQs de super-heróis.
Isso, porém, é o mundo dos negócios. A nós interessa o que nos podem oferecer. Se decidirmos ficar só nas virtudes da Netflix, basta enunciar a nova, delirante temporada de “Twin Peaks”: não é todo dia que a melhor vanguarda do cinema se desloca para os serviços sob demanda.
Não é só de gênios, claro, que se faz um serviço desse tipo. A Netflix oferece bons filmes e séries, sim. No meio de muita ruína, mas isso é a norma de qualquer cinema em qualquer lugar do mundo. Só não é motivo suficiente para não questioná-lo.
Para começar, a Netflix não substitui o DVD. Até agora, quem quisesse assistir, digamos, “A Palavra” (1955), de Carl Theodor Dreyer, bastava ir a uma boa locadora e alugar, ou, no limite, encomendar e comprar a caixa. Agora isso não é mais possível.
Se morar em São Paulo, com sorte encontrará alguma coisa numa livraria. Se não, dependerá da boa vontade dos vendedores de DVDs piratas que ficam na frente do Espaço Itaú da rua Augusta. Em outras cidades, não sei como o problema seria resolvido.
É incontestável, por outro lado, que o serviço sob demanda substitui os canais de filmes da TV paga com evidente vantagem. Os filmes ficam à disposição para serem vistos no horário mais conveniente. Grosso modo, o assinante escolhe o que quer ou não quer ver.
Pode-se argumentar que os canais pagos oferecem a vantagem do inesperado: liga-se a TV a qualquer instante e tanto pode surgir na tela um abacaxi sem nome como um filmezinho que nunca passou em cinema, do qual nunca ouvimos falar, e que se revela inesperadamente bom.
A Netflix permanecerá, no entanto, como um incômodo na vida de todo cinéfilo enquanto for praticamente compulsória a assinatura de um serviço cujos benefícios, como se vê, são, até segunda ordem, discutíveis.
Digamos que eu seja fã de filmes japoneses. O portfólio da Netflix (e dos demais serviços em atividade, como o Mubi) é mínimo. O mesmo se pode dizer do cinema europeu, do russo, dos mudos do mundo inteiro, dos melodramas mexicanos, da América Latina inteira...
Tudo isso de que as antigas locadoras conseguiam nos prover desapareceu. Algo se acha, aqui ou ali, nos sebos de DVDs. E, entre as distribuidoras, a Versátil resistia até pelo menos alguns meses atrás, graças a caixas muito boas, com extras e a preços bem acessíveis. Ainda assim, nos dois casos, os filmes só são disponíveis para compra.
O desenvolvimento da informática tem sido um desafio, no sentido de encontrar uma regulação capaz de convir aos desenvolvedores de programas e aos usuários.
Desafio para os governos, que na maior parte do tempo pouco se lixam para isso. E desafio, sobretudo, para os cidadãos (doravante reduzidos ao papel de meros consumidores), forçados a engolir transformações constantes em seus hábitos.
Com Disney ou sem Disney para concorrer com Netflix e Amazon, os serviços sob demanda ainda são, basicamente, um remendo para os estragos que eles próprios produziram nos progressos que, desde o DVD, beneficiaram a cultura cinematográfica. Mas, claro, isso não é uma preocupação para os comerciantes de filmes.
CRÍTICO DA FOLHA
Logo na abertura de “Especial de Ano Todo”, disponível na Netflix, a cantora e atriz Clarice Falcão faz um apelo aos telespectadores: “Se você se esforçar, vai conseguir gostar de mim”.
É um pedido um tanto inútil. Porque gostar da apresentadora não é a questão, a questão é achar alguma graça no programa dela.
“Especial de Ano Todo” mistura show de “stand up comedy” com musical. A coisa até funciona em algumas músicas, mas empaca quando Clarice Falcão, sozinha com o texto, precisa comandar a atenção da plateia. A atriz não demonstra segurança, carisma e talento cômico para fazer rir.
O show traz uma música para cada mês do ano, e as apresentações são intercaladas com quadros cômicos.
A quantidade de clichês impressiona: em pouco menos de uma hora, Clarice usa e abusa de artifícios como esculhambar a produção do próprio show (uma atriz interpreta a produtora incompetente e aparece no palco a cada gafe da produção), fazer piadas com atores interpretando gente da plateia e cantar letras escatológicas sobre músicas de sonoridade quase infantil.
Você já viu isso antes —e muito mais bem feito (só para citar dois exemplos que muitos devem conhecer: David Letterman e as piadas com o staff de seu próprio programa, e o Monty Python cantando “Sempre veja o lado bom da vida” enquanto seus integrantes são crucificados).
Impressiona também a falta de ritmo do show. A estrutura narrativa, com números musicais e esquetes divididos pelos meses do ano e sem ligação entre eles, atrapalha a fluência do programa e faz com que os quadros se sucedam aos pulos. O resultado é um programa sem história e, portanto, sem clímax.
O texto também deixa a desejar. Se algumas músicas têm letras engraçadas (uma paródia de “Águas de Março” com “pau, médio, enrugadinho” funciona bem), a maior parte das piadas é de uma falta de criatividade exasperante. Numa delas, uma moça da plateia é questionada sobre preferir “comer o cocô do namorado ou beber o xixi de um desconhecido”.
A cena final define bem o programa: Clarice sobe ao palco, contempla o teatro vazio, vira as costas e vai embora. Existe algum encerramento de show de humor mais sem graça e anticlimático? NA INTERNET Especi al d e Ano Todo ONDE Netflix AVALIAÇÃO ruim