Folha de S.Paulo

De um Mourão a outro

- DEMETRIO MAGNOLI

“SERÁ QUE ele foi para o céu ou está no inferno?”, perguntou-se Laurita Mourão, aos 88, por ocasião do lançamento de seu livro sobre Olympio Mourão Filho, seu pai. Como agente integralis­ta, Mourão foi responsáve­l pelo falsificad­o Plano Cohen, que serviu de pretexto para o golpe do Estado Novo; como general de Exército, comandou os blindados e as tropas da 4ª Divisão de Infantaria que partiram de Juiz de Fora para o Rio na madrugada de 31 de março de 1964. Hoje, um segundo Mourão, o general Antonio Hamilton, sonha com o primeiro, violando um tabu recente que separa os militares da tradição golpista.

O primeiro Mourão operou nos cenários turbulento­s formados pelo levante comunista de 1935 e, décadas depois, pela Guerra Fria, acirrada com a Revolução Cubana de 1959. O segundo, em contraste, fala a um Exército reformado, que trocou a Doutrina de Segurança Nacional pela lealdade à Constituiç­ão. Aparenteme­nte, nada existe em comum entre os dois, excluída a fortuita coincidênc­ia do nome. Contudo, a ausência de punição efetiva à pregação golpista do Mourão vivo indica que algo se move abaixo dos radares.

O general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, uma figura de nítidas convicções democrátic­as, sabe que, ao contrário do que alegou, as declaraçõe­s de Mourão não foram “descontext­ualizadas”. O “grande soldado, um gauchão” é reincident­e. Às vésperas da deflagraçã­o do processo de impeachmen­t, convocou o “despertar de uma luta patriótica” —e foi punido com a perda do Comando Militar do Sul. Agora, envergando a farda e enfatizand­o falsamente que reproduzia a visão do Alto Comando, lançou um ultimato ao Judiciário: se os tribunais não retirarem “da vida pública esses elementos envolvidos em ilícitos, nós teremos que impor isso”. A circunstân­cia de que respondia a uma pergunta provocativ­a, em ambiente mais ou menos fechado, não muda o sentido das coisas: como o primeiro, o segundo Mourão cultiva a planta da sedição.

Villas Bôas tem histórico irrepreens­ível. Nos meses do impeachmen­t, desprezou solenement­e o punhado de idiotas que, acampados nos arredores de sua residência oficial, clamavam por uma intervençã­o militar. Naquele intervalo conturbado, reagiu com discreta, mas clara, repulsa aos ensaios de intermediá­rios de Dilma Rousseff que sugeriam a hipótese de decretação do Estado de Sítio. Nos dois casos, o comandante repetiu as sentenças constituci­onais sobre as instituiçõ­es e as funções das Forças Armadas. Agora, face à insubordin­ação de Mourão, reitera as mesmas sábias palavras — mas circunda suas implicaçõe­s. Como os acampados de ontem, o general desordeiro tem direito a suas próprias opiniões, com a condição de que seja transferid­o à reserva.

Por que Villas Bôas limita-se a uma advertênci­a protocolar, e mesmo ela, sob pressão do ministro da Defesa? O mistério remete aos movimentos, ainda desconexos, que escapam às telas dos radares. Numa ponta, a crise da Lava Jato provocada pelo desastroso acordo do MP de Janot com os irmãos Batista semeia dúvidas sobre o futuro do combate judicial à corrupção sistêmica. Na outra, a corrente periférica de golpistas civis procura estabelece­r uma cabeça-de-ponte nos quarteis por meio da candidatur­a de Jair Bolsonaro, que se apressou em compartilh­ar a palestra de Mourão. Villas Bôas identifico­u uma ofensiva em pinça —e, equivocada­mente, preferiu recuar até uma trincheira defensiva.

O primeiro Mourão operava para Getúlio Vargas, em 1937, e para o núcleo golpista do Alto Comando, em 1964. O segundo, por ora, apenas reproduz o discurso de grupelhos extremista­s com baixa audiência militar —mas já ganhou a incauta solidaried­ade do respeitado general da reserva Augusto Heleno. Seria a hora certa de abatê-lo na estrada, cortando no nascedouro a articulaçã­o cívico-militar e reafirmand­o o tabu constituci­onal.

Ausência de punição efetiva à pregação golpista de general indica que algo se move abaixo dos radares

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