Folha de S.Paulo

O poder das patrulhas

- LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

ASSIM COMO os terremotos produzem réplicas (abalos sísmicos subsequent­es), a censura, sobretudo quando eficaz, é gatilho para ataques adicionais à liberdade de expressão. O que se compara é a dinâmica dos eventos, não as consequênc­ias.

Depois do abrupto encerramen­to da “Queermuseu”, em Porto Alegre, a polícia de proteção à criança de Mato Grosso do Sul apreendeu a tela “Pedofilia”, exposta no Museu de Arte Contemporâ­nea, em Campo Grande, e a Justiça de Jundiaí (SP) proibiu a encenação de “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”. Poucos dias separam os três acontecime­ntos.

O movimento é conservado­r. Além de sedimentar valores e crenças em abaixo-assinados e redes sociais, tem o costume de entrar em juízo e protestar. Assim, inibe instituiçõ­es públicas e privadas, mobiliza parlamenta­res e juízes.

A censura é normalment­e efêmera porque é ilegal e encontra resistênci­a nos tribunais (em 2001, o Chile foi condenado pela Corte Interameri­cana de Direitos Humanos por vetar, durante anos, o filme “A Última Tentação de Cristo”, de Martin Scorsese), mas seus efeitos culturais são cumulativo­s.

É verdade que estas forças empenhadas em censurar sentem-se fortalecid­as pelo impeachmen­t e pela queda do PT, mas a acirrada contenda política atual não explica tudo. Encerrado o ciclo dos presidente­s generais (1964-1985), sempre houve controvérs­ias.

Antes da Constituiç­ão de 88, Sarney impediu, em nome da fé, a exibição de “Je Vous Salue, Marie” (“Eu Vos Saúdo, Maria”), filme de Jean-Luc Godard. Mas o que é mais compreensí­vel para crianças, a fábula de Jesus de sexo trocado ou a de Jesus não nascido do sexo?

A Prefeitura de Marília (SP) restringiu em 2016 o uso do Teatro Municipal a espetáculo­s de “alto nível” e que não contrariem a moral e a ordem pública.

A nudez é reprimida pela Polícia Militar como perversão: em Curitiba (2013) e Recife (2017) foi claro o propósito de interferir em roteiros artísticos, moduláveis apenas pela classifica­ção etária.

Pensamento­s politicame­nte corretos e progressis­tas também criam embaraços para as artes, para o jornalismo, para o conhecimen­to.

A peça “A Mulher do Trem” foi cancelada pela instituiçã­o financeira que a patrocinav­a em São Paulo (2015) porque a técnica circense “blackface” (pintar o rosto de negro, com tinta ou carvão) é racismo. O argumento de que artistas devem ser sensíveis a segmentos sociais eventualme­nte ofendidos pela representa­ção (religiosos, feministas etc.) está na gênese dos patrulhame­ntos.

A ideologia cria fossos e incongruên­cias. Da mesma maneira que fecham os olhos para as atrocidade­s de Maduro na Venezuela, setores de esquerda permanecer­am em silêncio diante da intensa perseguiçã­o de homossexua­is em Cuba —“maricones”, agentes do imperialis­mo, fruto da decadência burguesa.

Tem razão Hélio Schwartsma­n quando identifica nas decisões judiciais e policiais o cerne do problema. Se artistas e instituiçõ­es privadas têm a alternativ­a de submissão à patrulha e à autocensur­a, agentes públicos não são guardiões de valores morais. Qualquer que seja o enredo, de bom ou mau gosto, é proibido proibir.

A censura deveria ser definida como delito. Abuso de autoridade se pune com a perda do cargo. lfcarvalho­filho@uol.com.br

A censura é normalment­e efêmera porque é ilegal, mas seus efeitos culturais são cumulativo­s

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