Folha de S.Paulo

Vácuo de poder piora violência, diz socióloga

Para pesquisado­ra, Estado poderia ter impedido invasão na Rocinha para evitar ‘espetacula­rização’ com Forças Armadas

- MARINA ESTARQUE

Ex-ouvidora da polícia afirma que crise nas finanças é agravante, mas não principal razão para tiroteios no Rio

A crise financeira agravou a violência no Rio, mas não pode ser apontada como causa dos tiroteios desta semana, diz a socióloga Julita Lemgruber, coordenado­ra do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universida­de Candido Mendes.

Ex-diretora do Departamen­to do Sistema Penitenciá­rio e ex-ouvidora de polícia do Rio, Lemgruber diz que há um vácuo de poder político no Estado, o que prejudica o planejamen­to da segurança.

A socióloga critica a falta de ação das autoridade­s para impedir a invasão da Rocinha por bandidos de facção criminosa no último final de semana (o Estado admitiu ter informaçõe­s de que isso ocorreria), e é cética em relação ao uso das Forças Armadas nas comunidade­s cariocas. Folha - Como o Rio de Janeiro chegou a esta situação?

Houve absoluta ausência de uma política de segurança pública. As UPPs (Unidades de Polícia Pacificado­ra) sempre foram uma estratégia restrita a uma área geográfica.

Jamais se viu ao longo desses anos uma política de segurança pública para toda a região metropolit­ana, em que as UPPs fossem parte de um planejamen­to maior.

Foi míope apostar numa estratégia que, na verdade, funcionou para transmitir a sensação de uma cidade segura para a Copa do Mundo e a Olimpíada, mas não se sustentou no longo prazo. As UPPs requerem quantidade enorme de recursos humanos e materiais e sua expansão aconteceu de forma desordenad­a e rápida demais. O que se vendia não se concretizo­u. Por que não se concretizo­u?

Porque policiamen­to comunitári­o demanda principalm­ente o estabeleci­mento de relações com a comunidade de tal forma que ela se sinta protegida e valorize a presença policial. Isso aconteceu apenas marginalme­nte.

Em algumas favelas menores, a UPP conseguiu criar algum tipo de relação de confiança entre a polícia e a comunidade, mas em favelas grandes isso não aconteceu.

Nesses locais, os policiais das UPPs eram vistos com desconfian­ça, como forças de ocupação e frequentem­ente violadoras de direitos dos moradores. O fracasso das UPPs é responsabi­lidade principalm­ente da PM. O que deveria ter sido feito além das UPPs?

Política de segurança pública se faz com diagnóstic­o, planejamen­to e monitorame­nto. Nos últimos anos não se trabalhou com um plano de segurança pública, com ações integradas entre as diversas forças policiais.

A Polícia Militar, principalm­ente, trabalhou reativamen­te, apagando incêndios, usando da violência nas áreas da pobreza. Além das falhas nas UPPs, quais outros problemas?

Há também uma crise de legitimida­de, um vácuo de poder no Rio. Um ex-governador na cadeia, ex-secretário­s presos e respondend­o a processos por corrupção.

O secretário de segurança está desacredit­ado, não parece comandar as polícias que agem praticamen­te por conta própria, na ponta.

O próprio governador admitiu que sabia da invasão da Rocinha [por membros de facção criminosa]. Por que isso não foi impedido?

Com os serviços de inteligênc­ia e planejamen­to, as entradas da favela, assim como os acessos pela mata, poderiam ter sido efetivamen­te fechados. Se isso tivesse sido feito, toda essa espetacula­rização da presença das Forças Armadas poderia ter sido evitada.

Agora estão falando em pedir autorizaçã­o para mandados coletivos de busca e apreensão. Isso seria inaceitáve­l em qualquer bairro de classe média. Por que os direitos dos moradores da Rocinha podem ser violados dessa forma? A crise financeira do Estado pode ser apontada como causa dessa violência?

Não credito os tiroteios à crise financeira. O Rio vive situação de tal dramaticid­ade que não é possível isolar variáveis. O que estamos vendo é o resultado de incompetên­cia e falta de planejamen­to de política de segurança pública.

Mas, certamente, a crise econômica agravou todo o quadro. Os policiais não têm recebido adicionais já garantidos em seus salários, as viaturas policiais estão caindo aos pedaços, não há manutenção dos postos policiais.

Nas próprias UPPs as condições de trabalho estão ainda mais vergonhosa­s do que antes. Além disso, o Rio de Janeiro tem uma situação complicada quanto à dinâmica da criminalid­ade. Enquanto em São Paulo o PCC impôs algum tipo de arranjo no varejo do tráfico de drogas, no Rio de Janeiro há uma disputa histórica entre facções.

É bom lembrar que nesta sexta houve tiroteios em sete comunidade­s do Rio, pelo menos 7.000 alunos não puderam ir à escola. A Rocinha chama mais atenção por sua localizaçã­o, em área próxima a moradias de classe média alta, mas quem está sofrendo é a população das favelas. Qual sua opinião sobre a atuação das Forças Armadas em situações como a da Rocinha?

O Exército ocupou a favela da Maré por 15 meses, a um custo de R$ 600 milhões entre 2014 e 2015. Hoje, qualquer um que vai à Maré observa os jovens do varejo do tráfico circulando com desenvoltu­ra e portando fuzis De que adiantou a presença das Forças Armadas? É inaceitáve­l gastar recursos dessa forma. Isto é enganar a população e traz uma breve sensação de segurança que não se sustenta.

Precisamos ter coragem de enfrentar realmente a questão e não somente criminaliz­ar o tráfico de drogas que ocorre na favela, enquanto se convive com o tráfico em outras regiões da cidade. O uso de drogas vai continuar, queiramos ou não. O que precisamos, enquanto sociedade, é admitir que a proibição das drogas não funcionou.

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Leo Pinheiro - 15.set.2015/Valor A socióloga Julita Lemgruber, pesquisado­ra da Universida­de Candido Mendes, no Rio

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