Quando têm mais renda
Celene da Silva, 29, faz parte do contingente de milhares de vendedores de porta em porta —propagandeando características nutricionais que constam em rótulos— que trabalham para a Nestlé.
Eles ajudam o maior conglomerado mundial de alimentos processados a ampliar seu alcance e chegar a 250 mil famílias nos recantos mais distantes do Brasil.
Enquanto ela deixava pacotes de Chandelle Paçoca —100 gramas de pudim dos quais 20 são de açúcar, quase o limite diário máximo recomendado pela Organização Mundial da Saúde—, chocolates Kit Kat, cereal infantil Mucilon, e Nestlé Grego Frutas Vermelhas —100 gramas de iogurte com 17 gramas de açúcar— nas casas de seus fregueses, uma coisa chamava a atenção neles: muitos, mesmo as crianças pequenas, estavam visivelmente acima do peso.
A própria Celene pesa mais de 90 kg e descobriu recentemente que tem pressão alta, condição que ela reconhece que provavelmente está ligada à sua “quedinha” por frango frito e Coca-Cola, que ela toma em todas as refeições, até no café da manhã.
Até recentemente, a Nestlé patrocinava um barco fluvial que entregava dezenas de milhares de caixas de leite em pó, iogurte, bolachas e doces a locais isolados na bacia amazônica. Desde julho, quando a embarcação foi desativada, proprietários de barcos particulares passaram a suprir a demanda.
O exército de profissionais de vendas diretas da Nestlé no Brasil faz parte de uma transformação mais ampla do sistema alimentar. A nova realidade é epitomada por um fato único e chocante: no mundo hoje há mais obesos que pessoas abaixo do peso.
Ao mesmo tempo, dizem cientistas, a disponibilidade crescente de alimentos de alto teor calórico e pobres em nutrientes está gerando um novo tipo de má nutrição, em que cada vez mais pessoas estão ao mesmo tempo acima do peso e subnutridas.
“Para falar em termos simples, essa dieta está nos matando”, disse Anthony Winson, que estuda economia política da nutrição na Universidade de Guelph, em Ontario.
Executivos da Nestlé dizem que seus produtos ajudam a
ANTHONY WINSON
estudante de economia política da nutrição na Universidade de Guelph, em Ontário (Canadá)
AHMET BOZER
presidente da Coca-Cola International, em discurso para investidores em 2014 aliviar a fome e fornecem nutrientes cruciais e que a empresa já reduziu os teores de sal, açúcar e gordura de milhares de seus produtos para torná-los mais saudáveis.
Sean Westcott, diretor de pesquisas e desenvolvimento de alimentos da Nestlé, afirma, porém, que a obesidade é um efeito inesperado da disponibilização ampla de alimentos processados de custo acessível.
Westcott disse que o problema se deve em parte à tendência das pessoas de comer demais quando têm melhores condições econômicas. A Nestlé, segundo ele, procura informar sobre tamanhos corretos de porções e se esforça para ter alimentos que equilibram “prazer e nutrição”.
Hoje existem mais de 700 milhões de obesos no mundo, 108 milhões deles crianças, segundo pesquisa publicado no períódico “New England Journal of Medicine”. A prevalência da obesidade dobrou em 73 países desde 1980, contribuindo para 4 milhões de mortes prematuras.
No Brasil, nos últimos dez anos a obesidade quase dobrou, chegando a 20% da população —o sobrepeso quase triplicou, chegando a 58%.
Quase 9% das crianças brasileiras eram obesas em 2015, um aumento de mais de 270% desde 1980, segundo estudo recente do Instituto de Métricas e Avaliação da Universidade de Washington.
Pais e mães ocupados alimentam as crianças com industrializados, frequentemente acompanhados de refrigerantes. Estudos revelam que o arroz, feijão, salada e carnes grelhadas, base da dieta brasileira tradicional, estão sendo abandonados.
“simples, essa dieta está nos matando Há 600 milhões de adolescentes que não tomaram uma Coca na última semana. A oportunidade para nós é tremenda