Folha de S.Paulo

PEQUENA HISTÓRIA DO FISOLOGISM­O NO BRASIL

Denúncias contra Temer reativaram o ‘correr de pires’ no Congresso, prática que se mantém desde os primórdios

- RANIER BRAGON

Os dias foram agitados no gabinete de Michel Temer nos 36 dias que separaram a apresentaç­ão da primeira denúncia criminal contra ele e a votação na Câmara que barrou sua tramitação.

Em 26 de junho o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, tornou oficial a acusação de que Temer cometera corrupção passiva por ser destinatár­io final de uma mala com R$ 500 mil de propina da JBS. Em 2 de agosto, a Câmara rejeitou dar aval à denúncia, por 263 votos a 227.

Entre uma data e outra, pelo menos 160 deputados visitaram o gabinete do terceiro andar do Palácio do Planalto.

Com a segunda denúncia do Ministério Público, cuja votação em plenário ocorre na próxima semana, abriu-se uma segunda temporada do “beija-mão” palaciano.

Ou, mais precisamen­te, do “correr de pires”. Nunca se pediu tanto, nunca se ofereceu tanto, acusa a oposição. Mesma oposição, registre-se, que apoiou o governo que, de 2003 a 2016, também manteve a prática do “toma lá, dá cá”.

O fato é que é impossível traçar objetivame­nte um ranking do fisiologis­mo desde os primórdios do Império para saber se Temer merece mesmo a láurea que seus adversário­s lhe atribuem. Mas é possível relatar episódios ilustrativ­os dos recentes dias que abalaram o mais importante gabinete do Planalto.

O deputado e ex-governador do Tocantins Carlos Gaguim (Pode-TO), por exemplo. No dia 2 de agosto, um dia depois de ter um tête-à-tête com Temer, ele votou contra a primeira denúncia, mas quase não mencionou seu conteúdo ao falar durante a sessão.

“[Para] que o Presidente Michel possa, juntamente com a sua equipe, levar recursos para o meu Tocantins, para saúde, educação, segurança pública, Gaguim vota ‘sim’”, anunciou no microfone da Câmara, em apoio ao relatório favorável a Temer.

Horas antes, o deputado teve mais tempo para explicar seu voto. “Ocupamos esta tribuna a fim de reivindica­r para Tocantins (...) as obras estruturan­tes daquele Estado, como a da BR-153, que sai de Goiás e atravessa todo o Tocantins. Nós estamos trabalhand­o nesse sentido com os ministros do presidente Temer, para que possam resolver essa situação.”

E prosseguiu: “Venho a esta tribuna reivindica­r aos ministros, ao presidente Temer, a retomada das obras do hospital de Araguaína e do hospital de Gurupi”.

E continuou, pedindo publicamen­te ao presidente uma ponte em Miracema, um posto de saúde em Irmão Adelaide, a revitaliza­ção da orla de Xambioá, uma outra ponte em Xambioá, um frigorífic­o de peixes para Brejinho de Nazaré e também para Araguanã, além de recursos sem destinação específica para os prefeitos de Palmas, Nova Rosalândia, Cristalând­ia, Carrasco Bonito e Novo Alegre.

Pouco depois das 11h daquele dia, a Folha flagrou o ministro Antonio Imbassahy, articulado­r político do governo, e o deputado Beto Mansur (PRB-SP), um dos principais aliados de Temer, manuseando no plenário a lista atualizada de liberação de verbas federais ao Congresso. Os dois se dividiam na tarefa de informar, deputado a deputado, a quantas andavam os pleitos.

Cada congressis­ta tem direito a, todo ano, direcionar verbas do Orçamento para obras e investimen­tos em seus redutos eleitorais.

A liberação desse dinheiro, em tempos normais, exige a superação de uma maratona burocrátic­a em ministério­s e na Caixa Econômica Federal —maratona que parece desaparece­r num passe de mágica em momentos em que o Planalto precisa da mão amiga do Congresso.

Cinquenta e cinco dias depois da votação da primeira denúncia, a Folha encontrou no mesmo plenário da Câmara o deputado Gaguim. Era a manhã do dia 26 de setembro, minutos antes do início da leitura da segunda denúncia contra Temer. “Não saiu nada”, disse o parlamenta­r sobre os pedidos.

E mostrou à reportagem a troca de mensagens em seu celular com um empresário do Estado que, segundo ele, já entregou 90% das obras de uma nova cidade nas imediações de Palmas, mas que até agora não recebeu pagamento do governo federal.

“Esse cara tá a ponto de se suicidar. E fica parecendo que fui eu quem deu calote.” Apesar do relato desanimado­r, Gaguim afirma que continuará votando ao lado de Temer. “Sou vice-líder do governo, mas quando venho aqui falar de emendas, vão dizer, ‘ah, o Gaguim tá vendido’.”

Nesse momento, o também deputado governista Mauro Pereira (PMDB-RS) chegou perto e perguntou o que o contrariav­a tanto. Ao ouvir a palavra “emendas” nem quis mais saber do resto. Levantou os braços, punhos cerrados, como se tivesse acabado de marcar um gol: “Em nome de Deus, estão saindo!” ALTOS INTERESSES Apesar de toda a virulência do discurso da oposição sobre a suposta transforma­ção do Congresso em um balcão de negócios, seria injusto dizer que práticas condenávei­s brotaram de uma hora para a outra nos salões verde e azul da Câmara e do Senado.

Desenhado por Oscar Niemayer (1907-2012), o complexo simbolizad­o pelos dois prédios em forma de H, ladeados pelas abóbadas para cima (Câmara) e para baixo (Senado), foi inaugurado em 1960 sob auspícios de retidão.

Pelo menos nas palavras do então presidente da Casa, Ranieri Mazzilli (PSD-SP), que no discurso da primeira sessão na nova capital afirmou que as acomodaçõe­s permitiria­m um trabalho “eficiente em prol dos altos interesses do país”.

Os altos interesses do país começariam, de fato, a ser tratados já naquela sessão de 2 de maio de 1960. O deputado Ernani Sátiro (UDN-PB), por exemplo, protestou contra um soldado que pediu identifica­ção para que ele pudesse entrar na Câmara. Outro reclamou de falta de água em seu apartament­o funcional.

Cinquenta e sete anos depois, esses dissabores já não afetam mais parlamenta­res. Todos recebem um broche de identifica­ção feito de metal dourado folheado a ouro, para uso na lapela, além de amplos apartament­os funcionais mobiliados na região central da cidade —ou auxílio-moradia de R$ 4.253 ao mês.

Câmara e Senado contam com um orçamento de R$ 10,2 bilhões em 2017. Cada deputado recebe salário de R$ 33,7 mil, ajuda de custo, plano de saúde, um “cotão” (de R$ 30,8 mil a R$ 45,6 mil ao mês) para gastos do dia a dia, além de R$ 102 mil ao mês para contratar até 25 assessores.

Um tratamento de excelência. Excelência esta que foi citada ainda na sessão inaugural. O deputado Rui Ramos (PTB-RS) apresentou projeto para banir o uso do “pedantesco” pronome “Vossa Excelência”. Não teve sorte.

Apesar do vocabular rebuscado, pesquisa do Datafolha feita no primeiro semestre deste ano mostrou que a atuação de deputados e senadores era reprovada por 58% dos eleitores, o pior número da história. Resultado que se explica em parte pela operosa fábrica de escândalos.

O caso dos Anões do Orçamento (1993), a compra de votos para a aprovação da emenda da reeleição (1997), o mensalão (2005), a máfia dos sanguessug­as (2006), os atos secretos do Senado (2009) e o esquema desvendado pela Operação Lava Jato (de 2014 aos dias atuais) são naves-mãe de uma infinidade de escândalos de menor proporção que envolveram e envolvem congressis­tas e outros políticos.

Em praticamen­te todos esses casos o Legislativ­o titubeou ou evitou punir os seus. Desde a Constituiç­ão de 1988, apenas 20 deputados e três senadores perderam o mandato pelo voto de seus pares.

Na última terça-feira (17), o Senado inovou e derrubou decisão do STF que afastara Aécio Neves (PSDB-MG) de seu mandato.

São anos de história que contrastam o discurso público de retidão e os acertos intramuros, de bastidor, selados em milhares de apertos de mão trocados no dia a dia.

E que ilustram a célebre razão dada pelo então corregedor da Câmara, Edmar Moreira (MG), para a dificuldad­e de um parlamenta­r punir outro —o insanável vício da amizade.

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