Folha de S.Paulo

Realengo ainda luta para superar tragédia

- DANIEL CARVALHO ENVIADO ESPECIAL A GOIÂNIA CLEOMAR ALMEIDA COLABORAÇíO PARA A EM GOIÂNIA LUIZA FRANCO

FOLHA,

Foram enterrados na manhã deste sábado (21) os dois adolescent­es mortos por um colega de sala que fez disparos dentro do Colégio Goyases, em Goiânia, na última sexta (20). Outros quatro jovens estão hospitaliz­ados.

João Pedro Calembo, 13, foi o primeiro a ser morto e foi apontado como desafeto do atirador, que foi apreendido.

Segundo os familiares, João Pedro era bom aluno, atuante na igreja, carinhoso com os irmãos mais novos e queria ser engenheiro civil. Quando não estava na igreja ou na escola, estava jogando futebol ou videogame.

“Ele era muito brincalhão, zoava com todos”, contou uma colega.

“João Pedro é mesmo cristão. Um dia disse: ‘pai, tenho um colega que sofre muito preconceit­o. Eu disse ‘meu filho, você tem que orar por ele’”, diz o publicitár­io Leonardo Calembo, 41, pai de João Pedro e dos dois irmãos dele, meninos de 6 e 8 anos.

João Pedro sentava na carteira imediatame­nte atrás da do atirador, no fundo da classe. Foi o primeiro a ser morto.

O pai da vítima nega a versão que o atirador e colegas de turma contaram à polícia, que João Pedro seria desafeto do menino que efetuou ao menos 11 disparos contra os colegas de classe.

Para investigad­ores, o crime foi premeditad­o por causa do bullying que o atirador sofria na escola. Colegas disseram que ele era chamado de “fedorento” e relataram que chegou a receber um desodorant­e como provocação.

A polícia informou que o atirador disse em depoimento que se inspirou em duas outras tragédias envolvendo atiradores em escolas —o massacre de Columbine, em 1999, nos EUA, e o de Realengo, em 2011, no Rio.

“Não acredito nessa história de desodorant­e. Não existe essa história de desafeto. Bullying é nome novo de uma brincadeir­a antiga”, disse o pai, que é presbítero da Igreja Batista Renascer. “Eu já perdoei desde o início. Foi uma fatalidade.”

O velório foi realizado no Parque Memorial de Goiânia e o corpo foi enterrado no fim da manhã. Colegas do colégio estavam de uniforme.

A Justiça determinou neste sábado (21) a internação do atirador por 45 dias. A punição para o caso pode chegar a três anos de internação.

Como os pais do garoto são policias militares, o promotor do caso, Cássio de Sousa Lima, pediu que ele não fosse colocado em meio a pessoas considerad­as perigosas para evitar represália­s. A arma do crime era utilizada pela mãe. AMIGO O tiro que atingiu na cabeça outro colega, João Vitor Gomes, 13, pôs fim ao sonho dele de ser piloto de Formula 1 e abalou sua família. A vítima havia feito um trabalho da escola com o atirador na noite anterior, via internet

Segundo o pai, o analista de sistemas Fabiano Fernandes, João Vitor era “inteligent­e, educado e sonhador”.

Fernandes e sua mulher, Katiusce, têm outros dois filhos, um menino de 10 anos — do sexto ano na mesma escola— e uma bebê de oito meses. João Vitor fazia aulas de inglês e violão e praticava natação.

Desolada, a mãe não quis conceder entrevista. O irmão de João Vitor chegou a dormir em uma sala de auxílio do cemitério, devido ao cansaço e sofrimento excessivos. Eles haviam se encontrado no recreio, poucas horas antes do crime, cometido no intervalo antes da última aula.

Como João Vitor é um dos poucos amigos do suspeito, a família acredita que ele foi atingido por um tiro aleatório, logo após o atirador atingir João Pedro, que sentava na carteira de trás.

O corpo foi sepultado no Cemitério Jardim das Palmeiras no fim da manhã. Outros quatro colegas atingidos permanecem hospitaliz­ados.

LEONARDO CALEMBO

pai de João Pedro, morto por colega

“Veio falar de tragédia?”, pergunta o carteiro Hercilei Antunes, 57, ao abrir a porta de sua casa para a Folha e notar o bloquinho de notas na mão da repórter.

Ele mora em frente à Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, zona oeste do Rio, onde aconteceu, em 2011, o massacre de 12 adolescent­es, vítimas de Wellington Menezes de Oliveira, 23, que atirou contra os jovens na sala de aula.

O episódio “inspirou” o adolescent­e de 14 anos que matou dois colegas e feriu outros quatro nesta sexta-feira (20), em Goiânia (GO).

Antunes não esconde a irritação. “Sabia que vocês voltariam”, diz, mas logo se desculpa: “é que, se eu falo desse assunto, daqui a pouco estou chorando.”

Além de ter sido um dos primeiros a entrar na escola para prestar socorro, é pai de uma aluna que estava em outro andar durante o ataque.

Está claro que o massacre de 2011 ainda é um assunto delicado para essa comunidade. “Passou, seguimos em frente, mas ninguém vai esquecer”, diz Elisabete Gomes, 41, mãe de uma aluna que tinha faltado naquele dia.

Uma ex-aluna que buscava seu currículo escolar nesta sexta para se inscrever na faculdade diz que até hoje lhe faz mal falar daquele dia.

Ela chegou a recusar o apoio psicológic­o que a escola ofereceu para não ter que tocar mais no assunto. Assim como outros colegas, pensou em mudar de colégio.

Procurada pela Folha ,adiretoria disse que não queria se pronunciar. “É para não ficar lembrando”, diz um guarda municipal. Para tentar amenizar as lembranças do que aconteceu ali, a escola passou por uma série de mudanças em sua estrutura.

No entorno de onde funcionava a quadra subiu um novo prédio. A entrada principal foi fechada com um muro, hoje pintado com homenagens aos adolescent­es mortos.

Outra foi aberta numa rua lateral. Também há um guarda municipal na porta todos os dias, o que é raro, senão inédito, em escolas no Rio.

Tudo o que acontece é registrado em câmeras espalhadas pelo campus. A última sexta foi um dia atípico para os alunos. Não houve aula, apenas a entrega de boletins.

Na saída do turno da tarde, a maior parte dos alunos não sabia sobre o que houve de manhã em Goiânia. Segundo eles, professore­s não citaram o caso em sala de aula.

A principal atividade organizada pelos professore­s foi a preparação de um mural com mensagens de paz. O tema foi mera coincidênc­ia.

Não havia sido escolhido por conta das mortes daquela manhã, mas faz parte de uma celebração regular que escolas municipais organizam para lembrar outra morte, a de Maria Eduarda da Conceição, 13, alvejada enquanto corria no pátio, durante uma troca de tiros entre criminosos e policiais em Acari, em março deste ano.

“nessa história de desodorant­e nem de desafeto. Eu já perdoei desde o início. Foi uma fatalidade

 ?? Mateus Bonomi/Folhapress ?? Família de João Vitor Gomes, que era amigo do desafeto, diz acreditar que ele foi vítima de tiro aleatório Mãe, avô, pai e irmão de João Pedro durante o enterro do garoto, que foi morto a tiros por um colega de sala na sexta (20)
Mateus Bonomi/Folhapress Família de João Vitor Gomes, que era amigo do desafeto, diz acreditar que ele foi vítima de tiro aleatório Mãe, avô, pai e irmão de João Pedro durante o enterro do garoto, que foi morto a tiros por um colega de sala na sexta (20)
 ?? Ricardo Borges/Folhapress ?? Estátuas em homenagem a alunos mortos em ataque de 2011 na escola Tasso da Silveira
Ricardo Borges/Folhapress Estátuas em homenagem a alunos mortos em ataque de 2011 na escola Tasso da Silveira

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